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Por que os ataques em escolas parecem estar mais frequentes? Especialistas respondem

O SÃO GONÇALO entrevistou psicólogos e antropólogo para comentarem sobre a frequência dos casos e como compreender o espaço educacional como um reflexo real da sociedade

relogio min de leitura | Escrito por Lívia Mendonça e Cyntia Fonseca | 06 de abril de 2023 - 10:39
Segundo especialistas, a violência dentro das escolas é reflexo de um conjunto de problemas estruturais enraizados na própria sociedade brasileira
Segundo especialistas, a violência dentro das escolas é reflexo de um conjunto de problemas estruturais enraizados na própria sociedade brasileira -

O recente ataque de um estudante de 13 anos a alunos e professoras de uma escola estadual de São Paulo marcou o 16º caso em escolas brasileiras nos últimos 20 anos. Na ocasião, a professora Elisabete Tenreiro, de 71 anos, morreu e outras quatro pessoas ficaram feridas. Apenas nove dias depois, outro ataque violento à uma creche na região sul também choca o país: Bernardo Cunha Machado (5 anos), Bernardo Pabest da Cunha (4 anos), Larissa Maia Toldo (7 anos) e Enzo Marchesin Barbosa (4 anos) na Educação Infantil, tiveram suas vidas brutalmente interrompidas. O que explica o contínuo aumento de situações como essa? 

De acordo com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), "o aumento de ideias e comportamentos fascistas, de extrema direita entre a população, de uma cultura de ódio, xenofobia e intolerância em suas mais variadas formas, contribuem diretamente para um cenário propício a atitudes cada vez mais violentas na sociedade".

O movimento também coloca em pauta um discurso que tem tomado conta de debates a respeito do tema, que é a complexidade dos fatos, onde medidas de segurança não serão suficientes para encarar uma realidade que está diante de nós: a violência dentro das escolas é reflexo de um conjunto de problemas estruturais enraizados na própria sociedade brasileira. 

Ataque que vitimou professora de 71 anos aconteceu no dia 27 de março
Ataque que vitimou professora de 71 anos aconteceu no dia 27 de março |  Foto: Divulgação/Arquivo pessoal
 

De acordo com um levantamento feito pelo 'Instituto Sou da Paz', no final de novembro do ano passado, desde 2003 o Brasil registrou 11 episódios de ataques com armas de fogo em escolas brasileiras. Os dois casos mais recentes, no entanto, foram marcados pelo uso de armas brancas.

Com a repercussão do caso que vitimou a professora em São Paulo, o Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio de Almeida, apontou para a radicalização a partir dos discursos de ódio como um dos fatores que podem ter desencadeado o ataque. Ele disse acreditar que possam ser necessárias algumas medidas regulatórias e repressivas, mas chama a atenção para a necessidade de medidas que encarem os outros aspectos da situação. 

Efeito cascata

Apenas nove dias separam o ataque a uma escola em São Paulo do ataque em Blumenau. Coincidência, sequência programada ou apenas um efeito em cadeia advinda da incitação ao ódio? Os ataques têm ou não correlação, apesar da distância geográfica?

O que se sabe é que sempre que há um ataque com características semelhantes, a repercussão é imediata em escolas de diferentes níveis sociais e graus de educação por todo o país. Um exemplo foi o rumor de ataque em escola de São Gonçalo, que começou a circular nas redes logo após a ação violenta de São Paulo. 

A mensagem do Whatsapp indicava que haveria uma lista de alunos e turmas visados como alvos dos alunos que estariam planejando o ataque numa escola estadual localizada no Pacheco.

Outro caso, poucos dias depois, foi registrado em uma escola no Boaçu, onde uma aluna foi flagrada com uma arma branca. Duas estudantes foram conduzidas à delegacia.

CONVIVENDO COM O MEDO

Brasil teve mais de 10 ataques a creches e escolas desde 2011
Brasil teve mais de 10 ataques a creches e escolas desde 2011 |  Foto: Divulgação
 

Se solidarizar com as vítimas desses ataques e com as famílias dos jovens que propagam esse tipo de violência, fica ainda mais latente quando se envia um filho ao espaço escolar. Pais e mães acabam sentindo na pele a consternação pelas vítimas e, ao mesmo tempo, o medo que se instala quando situações como essa parecem estar cada dia mais frequentes e próximas. 

A diarista e dona de casa, Neide Regina, moradora do bairro Rocha, em São Gonçalo, conta que, após os recentes casos de violência, pensou até mesmo em não mandar os filhos, de 13 e 8 anos, para a escola. Mas o medo deu lugar ao sonho de vê-los formados, e a crença de que a escola é o melhor lugar para se estar.

"Eu fiquei com muito medo, por uns dias não queria que eles fossem pra escola. Não gosto nem de imaginar eles passando por uma situação parecida, correndo risco, sofrendo ameaças. Mas, ao mesmo tempo, conversei com familiares, rezei bastante e entendi que pior seria privar eles de um futuro digno, com oportunidades, deixando o medo me consumir. Falei com meus filhos e os direcionei da melhor maneira que pude, tentando mostrar o certo e o errado", disse Neide. 

Segundo os especialistas entrevistados, enxergar que a escola continua sendo um lugar seguro é fundamental. "E para isso, são necessárias políticas públicas eficazes, com a participação de toda a comunidade escolar. Um espaço hostil e desestruturado leva à disseminação do discursos de ódio". 

DE QUEM É A CULPA?

O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) se pronunciou sobre a mais recente tragédia e, em nota, afirmaram que o ataque foi resultado do “descaso e abandono do estado para com as unidades da rede estadual de ensino de São Paulo”.

"A Apeoesp vem há anos realizando pesquisas sobre a questão da violência nas escolas e cobrando da Secretaria de Estado de Educação e demais órgãos do governo estadual providências para a redução da incidência dessas ocorrências. Faltam funcionários nas escolas, o policiamento no entorno das unidades escolares é deficiente e, sobretudo, não existem políticas de prevenção que envolvam a comunidade escolar para a conscientização sobre o problema e a busca de soluções”, diz a nota.

Os profissionais da educação, público majoritariamente atingido durante os ataques, lidam dia após dia com o ônus e o bônus da profissão. Ao mesmo tempo em que o amor pelo ofício os capacita a superar as adversidades, acreditando que só a educação salva, o desgaste e a sobrecarga em que são submetidos gera prejuízo à toda sociedade. 

A professora Gisele Timoteo, que leciona, há 10 anos, português e literatura em escolas estaduais de São Gonçalo e Niterói, acredita que os conflitos internos das crianças e jovens tenham se acumulado em um turbilhão de sentimentos mal administrados, principalmente durante o período de pandemia, onde a escola deixou de ser um refúgio e as relações esfriaram. 

"Seria super viável ter, no ambiente escolar, profissionais capacitados, como psicólogos, que ajudassem esse jovem, que talvez não saiba administrar muito bem suas emoções. Ou voltar ao SEO que existia na minha época, o Serviço de Orientação Educacional, que era muito relevante", afirma a professora. 

Mesmo diante das incertezas e da onda violenta que ronda a educação no país, Gisele reforça a ideia de uma educação inclusiva, amorosa e crente no melhor que o ser humano pode oferecer aos seus semelhantes. 

"Embora em determinados momentos  paire uma onda de tristeza com essa realidade, eu tenho sempre um lema que carrego: "Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima". A minha maior motivação é o otimismo! Eu acredito sempre que esses casos são exceções. Há muitos alunos carinhosos, prestativos em sala de aula, interessados em aprender", explica.

O doutor em antropologia, pesquisador e professor especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense, Marcos Verissimo, aborda uma outra face no que diz respeito às motivações desses ataques. 

"Ninguém sabe onde pode acontecer de novo, e isso envenena os ambientes escolares, que ficam por isso mesmo mais vulneráveis. As motivações, segundo pesquisadores que têm se dedicado ao tema, derivam em parte da adesão pouco reflexiva de uma parcela dos estudantes à jogos violentos em realidade virtual em um nível tal que realidade e virtualidade se confundem. Em algum momento, a banalização da morte no jogo, repetida, reafirmada, ritualizada, cotidianamente, pode levar a sua banalização na vida real. Mas é claro que isso, por si só, não explica atitudes tão extremas", afirma o professor Marcos Verissimo. 

Por mais Trabalho em conjunto

A professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Jimena de Garay, aborda a temática "escola" como uma estrutura complexa que necessita atenção. 

"A escola é um espaço de produção coletiva, de experimentação, de estabelecimento de vínculos sociais e afetivos, de encontro com a diferença. E são esses elementos tão importantes da vida que estão falhando na vida de muitas crianças e adolescentes. Outros referenciais sociais e culturais, inclusive aqueles que incitam o ódio, a violência e a morte, estão tomando força e lugar", afirma Jimena. 

Em casos extremos, onde alunos ou ex-alunos entram nesses espaços educacionais tomados pelo ódio e convictos de "fazer justiça com as próprias mãos", fica evidente a importância de um ambiente escolar que possua profissionais especializados em promover, em seu trabalho, o respeito à dignidade e integridade do ser humano, como psicólogos. Enxergar professores, alunos e demais funcionários como seres individuais, que precisam ser ouvidos, compreendidos e acolhidos em qualquer aspecto, é essencial. 

"O trabalho da psicologia é fundamental, inclusive, atualmente, está sendo discutida a implementação da Lei 13.935/2019, que estipula o trabalho de psicólogas/os e assistentes sociais nas escolas. Mas esse trabalho não pode ser apenas individual, com as pessoas consideradas problemáticas. Precisa ser institucional, fomentando o entendimento do coletivo, da diversidade, do pensamento crítico como eixos de uma educação que faça sentido e de uma sociedade mais justa", acrescenta.

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A opinião converge com a do antropólogo Marcos Verissimo, que diz que os conflitos devem ser resolvidos a partir de uma "força tarefa" entre professores, diretores, alunos e toda a comunidade escolar, para que o problema seja encarado como realmente é, um reflexo social, do qual não adianta aparar arestas. É preciso acolhê-lo como um todo.

"Todos nós devemos voltar o olhar para a criação de processos conjuntos e consensuais de administração de conflitos. Que sejam mais eficientes e mais horizontais do que os processos tradicionalmente empregados nos ambientes escolares. Deve haver também uma tentativa de aperfeiçoamento dos canais de escuta, para ouvir, com profissionalismo, as narrativas dos que sofrem", diz. 

"Talvez tenhamos que ser mais metódicos e menos futurólogos". - Marcos Verissimo, doutor em antropologia

O professor também conta que alguns programas vinculados à UFF,  como Pesquisas de Iniciação Científica, estimulam estudantes do ensino médio da rede pública a produzir pesquisas a partir de suas próprias inquietações. "Nós apenas os iniciamos nos métodos e técnicas de pesquisa, a exemplo do trabalho de campo antropológico. Sabe qual é um tema bastante frequente? Questões de saúde mental que afetam profundamente, visceralmente, os estudantes". 

"Tem muito sofrimento desconhecido pela literatura da pedagogia, e até mesmo da psicologia, e talvez esteja faltando escuta, para conhecer as origens dos sofrimentos e a natureza dos conflitos. Em suma, talvez tenhamos que ser mais metódicos e menos futurólogos", conclui Verissimo. 

Protocolo de prevenção

 

Juíza Vanessa Cavalieri
Juíza Vanessa Cavalieri |  Foto: Divulgação/Felipe Cavalcanti / TJRJ
 

A juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, declarou, após o ataque em São Paulo, que pretende implantar um protocolo de prevenção a ataques contra escolas, baseado nos métodos da cultura de paz e da justiça restaurativa. O objetivo é que seja implantado um projeto piloto na rede pública ou privada de ensino. 

Para a juíza, existe uma "epidemia de invisibilidades na infância e adolescência". Ela explica que quase todos os casos são cometidos por alunos ou ex-alunos que sofrem bullying de forma sistemática. 

Professores na 'linha de frente'

Um levantamento realizado em julho de 2022 pela associação Nova Escola ouviu mais de 5 mil professores e 51,23% deles relataram terem sido agredidos verbalmente nas escolas em que trabalhavam. Outros 7,53% relataram violência física. Na maioria das vezes (50,5%), os agressores eram os alunos.


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