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Literatura em SG: projetos independentes resistem em meio à falta de incentivo

Nascidas e pensadas na contramão da escassez de recursos, as iniciativas literárias buscam 'plantar' no município o amor pelos livros e pela literatura

relogio min de leitura | Escrito por Clarice Viana e Sofia Miranda | 22 de outubro de 2023 - 17:26
Jornateca, Arte Galeria Box e Ler é Arte são algumas iniciativas que resistem pela cultura e literatura em SG
Jornateca, Arte Galeria Box e Ler é Arte são algumas iniciativas que resistem pela cultura e literatura em SG -

Antes mesmo de "nos entendermos como gente", a leitura e a escrita permeiam nossas vidas. Em cada estágio de crescimento, a leitura está lá, com os livros de banho, depois com as histórias contadas antes de dormir e mais tarde, com a leitura extraclasse. Ou pelo menos, deveria ser assim. 

Segundo estudos divulgados pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, é por meio da leitura que as crianças desenvolvem a concentração, memória, raciocínio e compreensão, estimulam a linguagem oral e ampliam a capacidade criativa.

A realidade brasileira, porém, segue diferente do considerado essencial, visto que uma parcela da população nunca foi ensinada ao hábito da leitura de livros. De acordo com dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2015 para 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52%. 

Já os não leitores, ou seja, brasileiros com mais de 5 anos que não leram nenhum livro, nem mesmo em parte, representam 48% da população, o equivalente a cerca de 93 milhões de um total de 193 milhões de brasileiros.

Ainda segundo a pesquisa, os dados demonstraram que entre as dificuldades de leitura, estão a falta de concentração (13%) e compreensão daquilo que se lê, assumindo um percentual de 9% dos entrevistados. Além disso, a falta de incentivo por parte da família, das escolas e das instâncias governamentais também são fatores que colaboram para que as raízes desse problema não sejam cortadas. 

Apesar do que poderia ser visto como conjuntura favorável à leitura, pela acessibilidade, número de editoras, a diversificação de temas e preços, pelos ‘pocket books’, ou livros de bolso, mais leves e baratos, outros elementos vêm de encontro e ajudam a perpetuar o problema: as redes sociais. Segundo o estudo, a internet e o WhatsApp ganharam espaço entre as atividades preferidas no tempo livre entre leitores e não leitores. 

Em paralelo, está a crescente das gigantes do e-commerce no país, como a Amazon. Maior e melhor estruturada, o que, por um lado pode ser uma vantagem para leitores, por outro a empresa vem tornando a concorrência cada vez mais difícil para locais, médios e pequenos empreendedores do livro. Até mesmo as grandes redes sofreram o baque, principalmente após a pandemia. Como não lamentar a falência da centenária Saraiva?

E por falar em empreendedores do livro, outro velho problema é a falta de incentivo e recursos voltados especificamente para a literatura nos municípios. Em São Gonçalo, desde antes do fechamento da Biblioteca Pública Municipal em 2019 - reaberta posteriormente no bairro Mutondo - o movimento de valorização da literatura parece andar senão em marcha ré, em marcha lenta.

A esperança, como já divulgado em outras matérias do OSG, continua nas mãos e no coração daqueles que não desistem, mesmo em meio a tantos obstáculos, a partir da iniciativa privada e/ou voluntária. 

Literatura pela cidade 

É o caso da Arte e Galeria Box 212, inaugurada em agosto de 1994 na Avenida 18 do Forte, pelo comerciante Adelino Góes, de 59 anos. Pioneiros no setor de molduras, na cidade metropolitana, a galeria mais tarde veio se tornar um espaço de reunião de autores e leitores. Atualmente, o lugar abriga a Estante Comunitária Carolina Maria de Jesus, que realiza o empréstimo gratuito de livros de variados gêneros literários. 

"A iniciativa vem da absurda carência que existe em um município com uma população superior a diversas capitais, onde não existe um sebo de livros, mas apenas uma livraria, a Ler é Arte. Carência essa que faz o morador ter que se deslocar para Niterói ou Rio, gastar tempo e dinheiro com passagens e ainda ter que comprar o livro", explicou Adelino. 

Conforme o comerciante, a iniciativa também pretende cumprir com o poder de ensino crítico que a literatura tem a oferecer: "Aliada a esse objetivo está o de facilitar o acesso à leitura e a necessidade de as pessoas estarem mais esclarecidas na hora de escolherem seus dirigentes. Para isso, a homenagem é justamente à Carolina Maria de Jesus, que não teve essa oportunidade.’’

A Estante Comunitária Carolina Maria de Jesus realiza empréstimos gratuitamente
A Estante Comunitária Carolina Maria de Jesus realiza empréstimos gratuitamente |  Foto: Arquivo pessoal

Recheada com títulos de diversas cores, a Estante é abastecida por um acervo pessoal de Adelino e por doações de outras pessoas, além de autores gonçalenses. "Tenho ido recolher livros até no Rio. Tudo com trabalho braçal e despesas do próprio bolso. Recebemos aqui 3 caminhões de livros, fora às vezes que o transporte é por caminhonete e de pessoas que trazem em carros de passeio, em bolsas", detalhou. 

Em outro ponto da cidade, no Barro Vermelho, uma antiga banca de jornal foi transformada em uma biblioteca comunitária, a Jornateca. A iniciativa foi pensada em meio aos tempos incertos da pandemia, pelo gestor cultural Bruno Policarpo, de 41 anos. 

"A ideia surgiu na pandemia, percebi que muitas pessoas não estavam tendo acesso à leitura. As crianças por falta de aula, jovens e adultos por questões econômicas. Daí tinha que tentar ajudar de alguma forma. Foi depois de pensar em vários projetos, percebi que já tinha bastante livro e surgiu a ideia de partilhar os meus livros com a comunidade, só não sabia onde e como.’’ compartilhou. 

Por meio de um passeio de bicicleta, o comerciante percebeu a falta dos livros pelas ruas da cidade. "Percebi que as bancas de jornal não vendiam [livros]. Aí veio a ideia de colocar os livros na banca. Adquiri o espaço e comecei a trabalhar toda a elaboração do projeto. No dia 27 de agosto de 2021, depois do fim das restrições por causa da Covid, iniciamos o nosso projeto. Nosso diferencial é ter um acervo plural, dos clássicos aos romances de sucesso atuais.’’, disse.

A Jornateca foi uma iniciativa pensada durante a pandemia
A Jornateca foi uma iniciativa pensada durante a pandemia |  Foto: Reprodução

Em relação ao envolvimento da comunidade gonçalense com a iniciativa literária, Bruno afirma ter sido surpreendido pelo interesse que percebeu em cada um que adquiriu um livro emprestado:

Jornateca funciona aos sábados no Barro Vermelho
Jornateca funciona aos sábados no Barro Vermelho |  Foto: Reprodução

"Te confesso que foi uma surpresa agradável descobrir a quantidade de pessoas que têm o gosto pela literatura. No início, minha ideia era emprestar pelo menos um livro por dia, hoje, neste pouco mais de 2 anos, já ultrapassamos a marca de 800 livros emprestados, funcionando apenas aos sábados".

Já o efeito da literatura, é claro, não poderia ser outro: "O contato das crianças com o livro, o despertar da curiosidade e o interesse pela cultura é algo gratificante, ver a interação de jovens e adultos de nossa comunidade. Na troca de conhecimento e a utilização do espaço para este fim é algo que não tínhamos em nosso bairro", concluiu.

Nas proximidades de São Gonçalo, outros municípios realizaram, este ano, feiras e ações destinadas ao incentivo à leitura. Flup, Flim, Flin e Flip acontecem no Rio de Janeiro, Maricá, Niterói e Paraty, respectivamente, e trazem palestras, feiras de livros e programação musical. Na contramão disso, não há sinais da realização do Flisgo em 2023, festival anual de São Gonçalo.

O Flisgo é um espaço importante de divulgação e espaço para os escritores regionais. A feira incentiva o hábito de leitura na população e premia iniciativas literárias da cidade, além de trazer diversas editoras para São Gonçalo. A primeira edição aconteceu em 2019, e a última edição foi em setembro de 2022.

Flisgo 2019
Flisgo 2019 |  Foto: Divulgação

“O festival literário de São Gonçalo nasce de um movimento popular no qual a gente ficou contra a extinção da única Biblioteca Municipal que existia no município. Atendendo um milhão e duzentos mil habitantes.”, contou Alberto Rodrigues, publicitário e coordenador executivo da Flisgo.

Para o publicitário, a falta de incentivo pode ser explicada a partir das prioridades que cada gestão agenda: 

'Por não estarmos dentro de um grupo político específico, embora nossa pauta dialogue mais com a esquerda, mas nós não estamos dentro de um grupo específico. A gente evoca Sueli Carneiro, quando ela fala que entre esquerda e direita a gente continua sendo preto, periférico e isso só acontece com a gente, né? E a gente segue nesse lugar aí.''

No mesmo ano em que foi realizado o primeiro Flisgo, um grupo de voluntários uniu-se para a realização da Fisg, feira integrada de São Gonçalo. O projeto é da dramaturga Nilda Ferreira Mendes Filha, que passou a pensar sobre a necessidade de São Gonçalo ter uma feira que mostrasse a todos os moradores, um pouco dos variados estilos de artes que são produzidos na cidade.

Fisg
Fisg |  Foto: Divulgação

Além da feira realizada anualmente, a organização da Fisg promove as feiras itinerantes ao longo do ano, com saraus e encontros literários em escolas públicas e privadas. A Fisg acontece sem fins lucrativos, em parceria com instituições locais.

Enquanto algumas ações resistem, outras mostram o desinteresse em incentivar a leitura. E essas se refletiram nas livrarias da cidade. São Gonçalo já contava com poucos espaços de venda de livros na região, mas, após a pandemia, uma resistiu e não fechou as portas: a Ler é Arte

Imagem ilustrativa da imagem Literatura em SG: projetos independentes resistem em meio à falta de incentivo

A livraria Ler É Arte foi fundada há 18 anos, através de uma iniciativa de três amigas, Fátima, Glória e Virgínia. Hoje, o espaço é comandado apenas por Virgínia, que resistiu à possibilidade de encerrar as atividades em 2020. No mesmo ano, a Ler é Arte ganhou o prêmio Flisgo de Cidadania Cultural, na categoria Literatura. A livraria é essencial, também, na promoção de autores de São Gonçalo. Muitos escritores regionais usam o espaço para deixar suas obras à venda, e o lugar tem uma estante reservada só para os escritores da cidade.

A iniciativa trabalha com autores gonçalenses
A iniciativa trabalha com autores gonçalenses |  Foto: Reprodução

Outra iniciativa literária que resiste é a Literagonça. Foi fundada por Maurício Antonio Veloso Duarte e Bartira Mendes e trabalha com foco em autores gonçalenses, mas também vende obras de outros escritores do eixo Leste Fluminense. A iniciativa, apesar de ser importante para a região, não recebe nenhum tipo de incentivo financeiro, é o que conta Maurício:

O projeto disponibiliza diferentes pontos de vendas de livros na cidade
O projeto disponibiliza diferentes pontos de vendas de livros na cidade |  Foto: Reprodução

“Temos necessidade de transporte e alimentação, quando expomos e vendemos em feiras e eventos, sai do bolso da minha esposa e do meu”. O escritor e poeta acredita que todos os eventos literários de São Gonçalo têm de lutar para existir na cidade, já que a gestão não tem interesse em incentivar essas iniciativas.

“Todos os artistas e escritores gonçalenses quase sempre ou sempre precisam tirar recursos dos próprios bolsos se quiserem continuar com suas trajetórias artísticas, literárias, poéticas e culturais", completa.

Além de obras de escritores da região, recentemente, a Literagonça fechou uma parceria com a Casa Editorial, editora de Curitiba, que trabalha com títulos em braile. Em breve, a Literagonça irá disponibilizar títulos infantis em braile para atender, também, a gonçalenses deficientes visuais. 

Sem a confirmação do Flisgo, uma nova festa literária surge em São Gonçalo em 2023. A primeira edição do Via Palavra acontece este ano, dia 30 de novembro, na FFP- UERJ, e vai trazer uma feira de livros, debates e celebrações com a presença de escritores de São Gonçalo. 

A primeira edição vai acontecer neste ano
A primeira edição vai acontecer neste ano |  Foto: Reprodução

O Via Palavra vai acontecer sem auxílio financeiro, e o espaço do evento foi cedido pelo reitor da FFP-UERJ. Para Hélcio Albano, jornalista que compõe o quadro dos organizadores do evento, o interesse pela leitura é uma via de mão dupla.

“O interesse pela literatura perpassa por iniciativas de entidades públicas e privadas, no sentido de viabilizar o acesso aos produtos e aos espaços culturais e educacionais para os gonçalenses, pois para gostar de ler, precisamos de acesso a esse bem  maior que é o livro de um lado, e do outro o leitor”,  completou Hélcio. 

FFP-Uerj
FFP-Uerj |  Foto: Divulgação

Segundo Hélcio, o objetivo do Via Palavra é criar um espaço de debate entre os escritores, leitores, e todo o público que se interessar em comparecer para prestigiar o evento. A curadoria do festival foi feita pensando na inclusão e diversidade de diferentes áreas da literatura e cultura, e o Via Palavra vai trazer obras de literatura feminista, periférica, de cordel, trova, LGBTI+ e ancestral. 

Além de uma feira do livro, o Via Palavra também será uma celebração aos 50 anos de existência da FFP-UERJ. 

*Sob supervisão de Cyntia Fonseca

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