Arte urbana: A música de rua como ferramenta de transformação social que possibilita o sonho de chegar aos palcos
O SÃO GONÇALO conversou com jovens músicos gonçalenses que se apresentam nas ruas e seguem determinados em busca do desejo de viver da arte

Espalhados pela cidade em praças, esquinas, estações e transportes públicos, os artistas de rua exercem sua arte no espaço mais democrático para as mais variadas manifestações da cultura popular e a livre expressão artística. Estes profissionais abrem um atalho em toda a cadeia de produção musical, pois falam diretamente com o público, aproveitando a correria das grandes cidades para oferecer a arte como um elixir para diminuir as tensões do dia a dia. Eles ofertam seus dons e demonstram que o talento se mostra onde quer que seja. Com ou sem intermediários. Com ou sem tecnologia.
Com papel crucial na democratização da cultura, tornando a música mais acessível, os músicos de rua enfrentam desafios diários enquanto trilham seu caminho rumo ao sonho de viver da música. O desejo de fazer sucesso, obter reconhecimento e chegar aos grandes palcos, ao lado de grandes artistas, está intrínseco no amor que depositam no trabalho árduo e repleto de dedicação que realizam nas ruas.
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Para entender a dinâmica do dia a dia do trabalho realizado nas ruas e contar um pouco sobre a história e os sonhos destes artistas, O SÃO GONÇALO conversou com um violinista e um quarteto de cordas, ambos da cidade de São Gonçalo, que mesmo jovens, seguem, determinados, em busca do desejo de viver da arte.
Há cinco anos vivendo da música através de apresentações em espaços públicos, nas ruas das cidades de Niterói e São Gonçalo, os integrantes do quarteto de cordas "Quarter Bl4ck" são prova viva de que a arte e a educação são a chave para um caminho que, mesmo desafiador, tem como resultado a realização de sonhos.
"Sempre gostei muito de música, mas realmente nunca imaginei um dia poder me ver como artista. Tudo começou quando um amigo que já tocava me apresentou o violino e eu logo de cara me interessei e quis aprender. Comecei a estudar flauta, para depois pegar o violino. Me formei como músico na Academia Juvenil da Petrobrás e atualmente faço licenciatura na UNIRIO, além de fazer parte da Orquestra de Cordas da Grota. Mas foi a partir do incentivo de dois amigos, que começaram a tocar nas ruas de Alcântara, que eu também ingressei nesse trabalho, e em 2020 formamos o grupo Quarter Bl4ck, nosso quarteto de cordas. E posso garantir que, mesmo sendo desafiador, é gratificante receber o apoio e reconhecimento das pessoas", contou Ítalo Santos, de 21 anos.

Os outros três integrantes do grupo, Wellerson Botelho, 24 anos, Samuel Araújo, 21 anos e Wendersom Alcipio, 23 anos também ingressaram bem jovens no cenário musical, graças à incentivos educacionais, como a Orquestra da Grota [projeto social e musical com sede em Niterói que utiliza a música como ferramenta de inclusão social] e ao apoio de amigos e familiares.
"Desde pequeno sempre vi meu pai tocar guitarra na igreja, foi ele que me apresentou à música. Comecei a tocar bateria sozinho aos 13 anos, e aos 16 anos passei para a guitarra e para o violão, e me apaixonei ainda mais. E o que mais me incentivou a começar a tocar nas ruas foi a necessidade dentro de casa, porque essa era a única forma que eu tinha de ganhar dinheiro. E realmente, o dia a dia não é fácil, pessoas já me falaram para desistir da música, que não valia a pena, mas ao mesmo tempo sigo com o maior incentivo de todos, o dos meus pais, irmãos, e do pessoal da igreja, que sempre acreditaram em mim", afirmou Wellerson Botelho, músico e profissional do ramo da moda.
"O meu amor pela música veio através da minha família, principalmente através das minhas irmãs. Minha irmã toca violino atualmente, e foi ela que me colocou na aula de violoncelo, quando eu tinha 11 anos. Comecei na bateria, passei pelo violino e quando cheguei ao violoncelo me apaixonei de vez e estou até hoje. Acredito que o nosso maior desafio, enquanto artistas de rua, é entender que, literalmente, nem todo dia é dia. Vão ter dias ótimos e dias ruins, então a questão é realmente saber se adaptar e levar da melhor forma possível, levando a nossa arte, conquistando aplausos, sorrisos e tendo a certeza de que estamos no caminho certo", disse o violoncelista Samuel Araújo.
Para o estudante de música da UNIRIO, Wendersom Alcipio, de 23 anos, quarto integrante do grupo, o projeto da Orquestra de Cordas da Grota foi um projeto social fundamental para sua formação e amor pela música.
"Comecei na música aos 12 anos através do projeto Orquestra de Cordas da Grota, que oferece aulas de música gratuitas. Todos os alunos começam com a Flauta Doce, e o amor pela música veio através dessa vivência. Quis deixar a flauta e começar a estudar violino após assistir a ensaios na sede da Grota em Niterói, onde me emocionei com os alunos tocando juntos. E tocar nas ruas, trabalho que realizo desde 2019, começou como uma diversão, para mostrar realmente o que eu estava estudando, mas acabou se tornando uma fonte de renda, um meio onde aprendemos a lidar com críticas e aplausos", contou o violinista.



A música de rua também pode ser um importante meio de subsistência para muitos artistas, possibilitando uma plataforma para a expressão artística e a interação direta com o público. Além disso, este tipo de arte é uma das formas mais autênticas e acessíveis de expor talento, permitindo ao artista interagir cara a cara com o público. Além de ser uma forma poderosa de visibilidade, a música de rua também traz a vantagem de tornar o artista uma “vitrine” em tempo real, onde a arte fala por si e toca quem está por perto. E neste contexto, onde a música fala mais do que qualquer palavra, o estudante e violinista Jhony Cristopher Pereira, de 21 anos, entende muito bem.
Também integrante da Orquestra de Cordas da Grota, onde iniciou aos 6 anos, o músico solo se divide entre o dia a dia de estudos e apresentações pelas ruas das cidades de Niterói e São Gonçalo.
"Meu amor pela música começou desde muito cedo, aos 6 anos, e aos 13 passei a mostrar meu trabalho nas ruas, com a intenção de conquistar algumas coisas que a minha família não tinha condições de me proporcionar. E foi a partir disso que comecei a conseguir trabalhos em festa de 15 anos, casamentos e jantares", contou o violinista.

Sonho dos palcos
Muitos grandes artistas começaram suas carreiras nas ruas. A história da música está cheia de casos de artistas que se destacaram graças à exposição na rua, onde foram descobertos e receberam oportunidades. Desde músicos de jazz nos anos 1920 até estrelas do pop moderno, a música de rua é parte essencial da cultura e da indústria musical. A rua é, portanto, um local legítimo e de relevante importância para começar e expandir uma carreira musical.
Para um artista, especialmente um iniciante, praticar na rua é um excelente exercício de desenvolvimento, aperfeiçoamento e adaptabilidade. E, ainda que não seja fácil, a prática constante desenvolve habilidades que muitos músicos só adquirem depois de anos de palco, através do enfrentamento de olhares, o trabalho com o improviso e a conexão com o público.
Mas, ainda que as ruas venham a preparar o artista para a carreira artística de maneira efetiva, o sonho de viver da música, ter sucesso e se apresentar em grandes palcos, ao lado de grandes artistas, está intrínseco à todos estes músicos.
"Tenho o sonho de conseguir viver bem com a música e poder ajudar jovens de comunidades levando o conhecimento da música para eles, e tirando eles dessas realidade que temos na comunidade", disse Jhony Pereira. "Para quem ta começando, posso dizer que viver da música é dificil, mas vale a pena. A gente não pode desistir dos nossos sonhos, tem que estudar, tem que ter fé e correr atrás. Quero muito chegar aos palcos e conquistar uma melhor condição financeira", afirmou Wellerson Botelho.
"Meu sonho é poder me apresentar com grandes artistas, fazer um show para um grande público, e com certeza a gente pensa na fama, no crescimento do grupo, no reconhecimento nacional, é um desejo do nosso coração. Estou nessa caminhada, estudando, fazendo a minha parte. Não cheguei lá, e acredito que não estou perto de chegar, mas junto com o grupo estou persistindo e a gente acredita que vai dar tudo certo", garantiu Ítalo Santos. "Me vejo em um futuro próspero, onde eu possa estar nos palcos, fazendo o que eu amo que é viver de música, sem nunca desistir. E digo até mesmo para os jovens que estão começando, que muitas vezes se veem perdidos, sem caber qual caminho percorrer, que se o seu sonho estiver dentro do seu coração, acredita e segue. Por mais que pareça que não vai chegar, sua hora sempre chega", completou Samuel Araújo.
Ainda na temática de sonhos [realizados e em processo de realização], o violinista Wendersom Alcipio garante que o desejo de continuar aprendendo e investindo na música segue vivo em seu coração, mesmo diante das dificuldades.
"Meu maior sonho era viver da música, e já foi realizado. No entanto, quero continuar aprendendo, me qualificando e investindo na minha musicalidade para ter mais retorno. Quero estudar e tocar meu instrumento cada vez melhor, estar preparado para oportunidades e continuar fazendo o que amo. E para aqueles que, assim como nós, tem esse sonho, não permitam que a música se torne apenas "trabalho" e busquem inspiração constantemente para manter o amor pela música vivo. Com dedicação e visibilidade, as oportunidades surgirão", afirmou o músico.
Na rua, todo mundo é público e todos acabam sendo contagiados pelo palco aberto que se tornaram as vias públicas das cidades. Sejam músicos, atores, palhaços, acrobatas, malabaristas ou artesãos, estes artistas tem em comum não só o palco a céu aberto, como também a oferta de alegria e entretenimento nos trajetos rotineiros dos brasileiros mostrando que a arte de rua hoje é um berço de diversidade e ferramenta poderosa para a disseminação da cultura em sua forma mais pura.