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'Quem matou? Quem mandou?' Após 20 anos, crimes por mortes de vereadores prescrevem em SG

Investigações pelas execuções de Beija, Luís do Posto e Carlinhos da Marmoraria não conseguiram apontar autores ou mandantes

relogio min de leitura | Escrito por Renata Sena, Ari Lopes, Felipe Galeno e Kiko Charret | 10 de agosto de 2023 - 08:30
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São Gonçalo é famosa por ser a segunda maior cidade do Estado do Rio em população, com cerca de 896 mil habitantes, ficando só atrás da capital (Rio). Mas, nos últimos anos, o município da Região Metropolitana tem ganhado as manchetes por causa do alto índice de violência, que atinge não só os moradores comuns, mas também autoridades públicas, como a juíza Patrícia Acioli, executada por policiais militares, em agosto de 2011.

O assassinato da juíza chocou o país e teve repercussão até na imprensa internacional, sendo investigado e solucionado por uma força tarefa da Polícia e do Judiciário em poucos meses. Mas, a impunidade ainda é uma marca nos crimes de homicídios não solucionados na cidade, que conta com uma Divisão de Homicídios (DH), responsável por investigar as mortes ocorridas em São Gonçalo e outras três cidades da região (Niterói, Itaboraí e Maricá).

Nos últimos anos, desde 2003 até junho deste ano, foram registrados 6.956 homicídios em São Gonçalo. Isso representa perda de 0,8% da sua população, quase 1% por morte violenta. Entre 1999 e 2011, o número de elucidação de homicídios em São Gonçalo era de 4 a 6%, segundo o ISP e o Ministério Público. 

Como exemplos dessa impunidade, nos últimos 25 anos, três vereadores foram mortos em São Gonçalo durante o exercício de seus mandatos. Dois dos crimes, ocorridos em 2003, acabam de prescrever, 20 anos depois, sem que nenhum suspeito tenha sido indiciado, incriminado ou preso.

Para mostrar como essa situação vem se perpetuando, os repórteres Renata Sena, Kiko Charret, Felipe Galeno e Ari Lopes percorreram delegacias, divisões especializadas, vasculharam arquivos de inquéritos em DPs de arquivos cartorários, entrevistaram promotores e delegados que atuaram nos casos, especialistas em segurança pública e ouviram familiares das vítimas. O resultado desse trabalho investigativo gerou a série 'Quem matou? Quem mandou? 20 anos sem respostas'.

Carlinhos da Marmoria no velório do Luis do Posto
Carlinhos da Marmoria no velório do Luis do Posto |  Foto: Divulgação

Quem matou? Quem mandou? Essas duas perguntas não vão mais ser respondidas para os familiares dos vereadores Carlos Lopes da Silva, o Carlinhos da Marmoraria, Luís Carlos da Silva, o Luís do Posto e José Benjamim de Souza Sobral, o Beija, já que os crimes prescreveram, depois de 20 anos, sem que a polícia ou o MP conseguissem concluir os inquéritos.

Câmara dos Vereadores, região central de São Gonçalo. 30 de julho de 2003. Mais de 10 tiros foram disparados contra o carro do vereador Carlos Lopes da Silva, o Carlinhos da Marmoraria, 43 anos, na época, quando ele saía de uma sessão. Sete disparos atingiram diversas partes do corpo do parlamentar. O segurança de uma farmácia e o segurança da Prefeitura, que estavam em seus locais de trabalho, acabaram baleados, mas sem gravidade.

Carlinhos foi socorrido em estado grave e morreu sete dias depois no hospital. Ele estava sozinho e foi emboscado quando saía de uma sessão extraordinária na Câmara da cidade. 30 de julho de 2023, o crime prescreveu sem que nenhum suspeito tenha sido indiciado, acusado ou preso. 

"O que está acontecendo em São Gonçalo é pistolagem"
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No dia do atentado que culminou na morte do Carlinhos, o clima não era dos mais tranquilos na Casa do Legislativo; menos de dois meses antes, no dia 8 de junho, o também vereador Luís Carlos da Silva, o Luís do Posto, 39 anos, já havia sido morto a tiros por dois homens em uma moto. Também foram dois homens em uma motocicleta que teriam atirado contra Carlinhos, no estacionamento da Câmara, no mesmo ponto onde funciona a Prefeitura da cidade. Cinco anos antes, o vereador José Benjamin, o Beija, 33 anos, foi executado na porta de casa, no Rocha, em São Gonçalo. Ele foi o primeiro político na cidade a ser executado durante seu mandato.

Crachá do Luis do Posto com grafia diferente
Crachá do Luis do Posto com grafia diferente |  Foto: Divulgação

Assim como Carlinhos e Luis do Posto, Beija era um nome popular na região. Nas eleições municipais de 1996, fez uma campanha bem-sucedida pelo PSC e conseguiu acumular 6.038 votos a seu favor no dia do pleito. Com o resultado, foi o vereador mais votado não apenas daquele ano, como da história da Câmara de São Gonçalo até aquele momento.

De acordo com reportagens da época, os políticos gonçalenses mortos tinham apelo popular, conviviam com uma realidade hostil entre seus colegas de parlamento e apresentavam opiniões divergentes sobre diversos temas. Ciente da realidade que se desenhava na cidade, após a morte do Carlinhos, o então secretário estadual de segurança, Anthony Garotinho, retirou as investigações das mãos de agentes locais e encaminhou os três casos para serem apurados por policiais da Divisão de Homicídios da Capital (DHC). Sem ajuda de outras estruturas da segurança pública, a polícia civil seguiu investigando os atentados. "O que está acontecendo em São Gonçalo é pistolagem", disse Garotinho, na ocasião. 

José Benjamin, o Beija
José Benjamin, o Beija |  Foto: Divulgação

Carlinhos, que cumpria seu segundo mandato na época, já havia sido alvo de outro atentado menos de três anos antes de sua morte. Em 19 de janeiro de 2001, na época em que ocupava a cadeira de presidente da Câmara, o veículo que o parlamentar dirigia foi atingido por disparos enquanto voltava de uma visita a um canteiro de obras no bairro Bandeirantes. Pouco tempo depois, Carlos definiu, em sessão, que a Câmara era “um barril de pólvora prestes a explodir”, em referência aos relatos de pessoas circulando armadas pelo prédio.

A fala foi relembrada e ganhou um tom de presságio em 2003, quando parlamentares apontaram que Carlinhos pressentiu a morte, já que no dia do seu atentado, Carlinhos ocupou a tribuna da Câmara para ler o Salmo 59 da Bíblia Sagrada. "Livrai-me, Deus meu, dos meus inimigos; põe-me acima do alcance dos meus adversários. Livrai-me dos que praticam a iniquidade e salva-me dos homens sanguinários, pois que armam ciladas à minha alma". As orações do vereador não o livraram de ser alvejado menos de 30 minutos depois. 

Na ocasião, Carlinhos já não era mais presidente da Câmara, mas comandava a Comissão de Direitos Humanos da Casa. Havia discutido a prorrogação do PSF, o Programa Saúde da Família, durante a sessão. Ele deixou a Câmara e seguiu para pegar seu carro, um Jeep do modelo Troller. Chegou a sair do estacionamento, mas parou na Rua Machado de Assis, logo ao lado, para atender uma ligação. Foi nesse instante que uma dupla, de motocicleta, parou próximo ao carro do vereador e iniciou os disparos. O segurança de uma farmácia e o vigia do estacionamento da Prefeitura correram em direção ao fato. Armados, chegaram a atirar contra os criminosos, mas acabaram feridos. O vereador foi levado imediatamente para o Pronto Socorro Municipal. Alguns dias depois, foi transferido para uma unidade médica particular. Passou por cirurgia e foi observado de perto no CTI. Sete dias após o atentado, Carlinhos morreu. 

Baleado: Valtaride
Foto: Alcyr Ramos/O São Gonçalo
Baleado: Valtaride Foto: Alcyr Ramos/O São Gonçalo |  Foto: Divulgação

A morte marcou também o fim de uma trajetória política bem conhecida em São Gonçalo. Carlos Lopes da Silva se candidatou ao Legislativo pela primeira vez em 1996, quando foi eleito com mais de 2,8 mil votos, à época pelo PMDB (atual MDB). Durante o mandato, mudou de partido e, em 2000, se lançou à reeleição pelo PDT. O sucesso foi ainda maior que na eleição anterior. Com mais de 13 mil votos, ele foi eleito para um segundo mandato, que começou logo com uma passagem pela Presidência da Câmara. Carlinhos esteve à frente da casa pelo biênio 2001-2002 e, durante o período, teve atritos com algumas outras figuras recorrentes da política gonçalense da época.

No ano em que foi assassinado, seu filho Thiago de Araujo Silva tinha 21 anos e era estudante universitário, cursando Direito. Ele cresceu frequentando as sessões da Câmara com o pai e no dia do atentado não estava com ele, pois precisou estudar com um amigo. Seis anos depois de ‘perder’ o pai, nas eleições municipais de 2009, foi eleito como vereador da cidade. Sem nunca ter visto alguém pagar pelo crime, Thiago contou como foram os anos de investigação, a sensação de ocupar o espaço que o pai tinha na Câmara e o modo que encarou tudo. “A sensação que tínhamos na época é que todo mundo sabia o que tinha acontecido, menos eu. As pessoas se aproximavam para mandar eu deixar para lá. A polícia só me ouviu duas vezes, pelo que recordo. Em pouco tempo nada andava, não parecia ter investigação”, afirmou.

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As duas perguntas que dão nome a série 'Quem matou? Quem mandou?' foram usadas por quem cobrava a solução para a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada no Estácio, região central do Rio de Janeiro, na noite de 14 de março de 2018. Cerca de 10 tiros foram disparados contra o carro da vereadora e quatro disparos atingiram a cabeça, tirando a vida da parlamentar, que sofreu uma emboscada após sair de um compromisso profissional, na Lapa. Seu motorista, Anderson Gomes, também morreu na hora. A jornalista e assessora parlamentar Fernanda Chaves foi a única sobrevivente do crime. No caso Marielle, em menos de um ano, no dia 12 de março de 2019, uma das perguntas já havia sido respondida, com a prisão de dois acusados do crime. Um terceiro foi preso no último dia 10 de agosto de 2023. Com o executor, o condutor do veículo e um dos articuladores do crime presos, só resta a pergunta 'Quem mandou?'

A polaridade política tem levado parte da população a questionar se os mesmos investimentos e recursos utilizados no caso Marielle tivessem sido empregados nas investigações das mortes de Carlinhos da Marmoraria, Luis do Posto e Beija - como também foram na solução da morte da juíza Patrícia Acioli, executada por fazer seu trabalho - esses crimes políticos teriam sido solucionados antes de prescreverem.

Doutora em Segurança Pública, antropóloga Jacqueline Muniz
Doutora em Segurança Pública, antropóloga Jacqueline Muniz |  Foto: Divulgação

Para a doutora em Segurança Pública, antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, a solução desses crimes tornariam 'mais caro matar no Rio de Janeiro'. “A realidade é que a solução desses casos não impediriam o assassinato da Marielle. Mas, certamente, deixariam mais caro matar no Rio de Janeiro. Pois aqui sai barato matar”, explicou. 

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No próximo episódio da série 'Quem matou? Quem mandou?': 'Matar político virou coisa comum'

No episódio final da série 'Quem matou? Quem mandou?'Prescrição simbolizou um segundo ‘enterro’

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