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Quinze anos do sequestro do ônibus 174

Da infância pobre em São Gonçalo à protagonista de uma tragédia

relogio min de leitura | Escrito por Redação | 14 de junho de 2015 - 19:28

Durante quatro horas e trinta minutos, Sandro manteve passageiros reféns dentro do ônibus 174. Entre as vítimas estava Geísa Gonçalves, que acabou morta após uma ação desastrada da polícia

Foto: Arquivo

Por Elena Wesley e Matheus Merlim

O capítulo trágico de uma história que durou quatro horas e trinta minutos aconteceu há quinze anos, na Rua Jardim Botânico, altura do Parque Lage, no Rio. O corpo da professora Geísa Gonçalves estava estirado ao chão, enquanto, dentro do camburão da Polícia Militar, o então julgado algoz, Sandro Barbosa do Nascimento, morria asfixiado. Era fim da tarde do dia 12 de junho de 2000, quando o Brasil parou. Televisões ligadas, clima de medo. O sequestro do ônibus 174 (Central x Gávea) repercutiu até na imprensa internacional.

Se em uma década e meia após o ocorrido, as cenas de terror não saem da mente de quem acompanhou o caso pela mídia, para quem conviveu com Sandro durante a infância no bairro do Boa Vista, em São Gonçalo, as imagens estão ainda mais presentes. Familiares, amigos e vizinhos continuam buscando explicações para o protagonismo do jovem de 22 anos naquele dia.

Apesar da perda precoce do pai e de ter presenciado o assassinato da mãe, Sandro tentava manter a rotina de uma criança normal: soltar cafifa, jogar bola e outras atividades do tipo. Parceiro de ‘pelada’ no campinho do bairro, o chargista Marcus Vinícius, de 41 anos, não consegue associar o amigo que costumava brincar com o “vilão” que a TV exibiu há quinze anos.

“Ele não era nada daquilo que as imagens mostraram. Eu jogava bola com ele, morávamos na mesma rua. Ele era uma pessoa muito dócil”, relembra.

Estudante de uma escola pública de ensino integral, Sandro conciliava o tempo para os estudos com pequenos trabalhos como ajudante de obras para conseguir o dinheiro próprio, conforme conta um vizinho, que preferiu o anonimato.

A trajetória de Sandro só foi mudar aos 14 anos de idade, quando decidiu abandonar a casa, onde morava com a tia Julieta e três primos desde a morte da mãe, para viver pelas ruas do Rio. Nesta época, ele adotou o codinome “Alex Mancha”, em alusão a uma mancha de nascença no rosto, com o objetivo de dificultar que a família o encontrasse.

E foi ainda durante a adolescência que o garoto sonhador dos campos de várzea presenciou a morte pela segunda vez. No dia 23 de julho de 1993, Sandro integrava o grupo de meninos de rua vítima do episódio conhecido como ‘Chacina da Candelária’. Por ter se escondido embaixo do corpo de um de seus “irmãos”, sobreviveu.

“Ele não queria morar no Boa Vista. Tudo ali eram lembranças da morte da mãe e da falta que sentia dela. Ele presenciou tudo, nunca ia esquecer a cena. O Sandro guardava para si o que sentia, não admitia a saudade. A gente achava que ele estava bem, superando a perda, porque era uma pessoa cativante e tinha facilidade para fazer amizades”, lembra o primo E. M., de 40 anos.

Sete anos depois, ao contrário da tragédia anterior, Sandro era o “vilão”. Ele fez dez reféns dentro de um ônibus. “Não dá para definir o que aconteceu como algo diferente de ‘tragédia’. Ele foi criado comigo, eram apenas três anos de diferença. Por isso mesmo, ninguém da família associou que ele era o cara na televisão. Até cair a ficha, já era tarde demais, ele estava morto”, lamenta o primo.

O passar do tempo, no entanto, ainda não sanou a dor de quem viu Sandro crescer. OSG foi até a Rua Paulo Setúbal, onde o jovem morava, à procura de outros familiares, mas apenas um tio, que preferiu se identificar como P.C., de 56 anos, teve condições de se abrir sobre a história do sobrinho.

Segundo ele, a família só percebeu que Sandro era o sequestrador, quase ao fim do caso. “Uma tia de Olaria (bairro da Zona Norte do Rio) ligou para cá à noite, para alertar que era o Sandro. Não tínhamos ideia porque o rosto estava escondido. A maior parte da família não conseguiu assistir às cenas, nem acompanhar pela televisão”, recorda.

Álvaro acompanhou episódio de perto e disse que Sandro pretendia se entregar (Foto: Leonardo Ferraz)
Álvaro acompanhou episódio de perto e disse que Sandro pretendia se entregar (Foto: Leonardo Ferraz)

Sequestro marcou o Parque Lage

Quem realiza um percurso que passe pelo ponto onde a tragédia se desenrolou mal consegue associar o ambiente ao fato. Tendo o ar fresco que emana do Parque Lage e ao fundo das árvores e do palacete, a visão do Cristo Redentor, a Rua Jardim Botânico é uma das mais valorizadas da zona sul do Rio.

O clima pacato da vizinhança se completa com a estrutura das construções. Na contramão dos condomínios da área nobre da capital, com cada vez mais equipamentos de segurança, os prédios residenciais da via preservam o pequeno número de andares, protegidos apenas por muros de ferro em acabamento simples e de baixa estatura.

Personagem daquele cenário de tranquilidade, à frente do portão do prédio onde mora há mais de 40 anos, a aposentada Vera Araújo lembra bem o rebuliço dos arredores no dia do sequestro.

“Estávamos todos curiosos, inclusive eu, embora estivesse recém-operada, mas ninguém se atrevia a descer para conferir de perto, com medo de levar um tiro. Fiquei com a minha mãe, hoje já falecida, acompanhando pela TV e sem acreditar no que víamos”, conta a aposentada de 82 anos.

Segundo Dona Vera, o assunto saiu de pauta entre os mais novos, mas permanece vivo para quem esteve tão perto do desenrolar de momentos de terror. “Não tenho medo de que se repita, mas sei que não vou esquecer”, arrematou.

A poucos metros do portão de Dona Vera, o porteiro Álvaro Del Valle mantém a rotina que seguia naquele 12 de junho de 2000. Sentado por detrás das portas de vidro do Clube Militar, ele fiscaliza o entra-e-sai dos sócios e beneficiários há 18 anos. Testemunha ‘privilegiada’ das quase cinco horas de sequestro e do desfecho trágico para os dois jovens, o funcionário recorda detalhes do episódio.

“Seria impossível esquecer um fato que marcou tanto. Aqui mesmo em frente ao clube havia um cerco da polícia, e outro na altura da sede da Rede Globo. Não parava de aglomerar gente ao redor, curiosos, jornalistas”, conta o porteiro de 56 anos.

Através dos equipamentos das redes de televisão, era possível entender com perfeição os diálogos que ocorriam dentro do ônibus. Com base no que viu e ouviu, Álvaro afirma, sem dúvidas, que Sandro pretendia se entregar.

“Em nenhum momento ele se mostrou agressivo. Deu pra ouvi-lo quando disse à primeira moça (Janaína) que não ia fazer mal a ela, que estava fingindo, que era só pra ela deitar no chão. A única pessoa que ele xingava a todo momento era aquela delegada (Martha Rocha, ex-chefe da Polícia Civil)”, relembra.

Embora a negociação parecesse interminável, Álvaro garante que, assim como a maioria dos espectadores, esperava um final diferente para o episódio que, a seu ver, parecia cena de filme.

“O Sandro ia se entregar, mas estava com medo de o matarem. Ele pediu a presença de alguém importante na Polícia e, se não me engano, o comandante do 22º BPM (Humaitá) veio e começou a conversar com ele. Ele confiou nisso e desceu do ônibus ainda falando com o comandante, segurando a Geisa pelo pescoço. O erro foi o agente do Bope, que veio por trás do ônibus e atirou”, acredita Álvaro.

Segundo o porteiro, foi difícil acreditar no que acontecia ao ouvir os disparos.

“Toda a expectativa de que tudo ficaria bem acabou. Quando as pessoas viram que a professora foi atingida, arrebentaram o cordão de isolamento, passaram por cima dos policiais para linchar o Sandro. Mesmo depois de o garoto estar dentro do camburão, todo mundo pressionava. E ele (Sandro) já chegou na delegacia morto”, conclui.

Lembranças ainda vivas na memória do carioca

Em 15 anos, foram quatro tentativas de tirar da memória da população carioca a incômoda alusão da linha Central x Gávea com o sequestro que surpreendeu o país. Pouco depois da tragédia, o ônibus 174 passou a ser 175; com a falência da Amigos Unidos, se tornou 158, até ser comprada pela empresa Alfa, que optou pelo número 143 para definir o trajeto.

Contudo, nem mesmo tantas alterações foram suficientes para apagar as lembranças daqueles que utilizavam a linha ou mesmo dos que dependem dela atualmente. É o caso do motorista Ivan Vieira, que trabalha no itinerário há pouco mais de um ano.

“Eu era caminhoneiro nesta época, mas lembro de ter acompanhado o caso no noticiário. Era difícil de acreditar”, disse.

Mesmo com o episódio ainda fresco na memória, Ivan não teme que ‘o raio caia duas vezes no mesmo lugar’.

“Com oito anos de carreira como motorista de ônibus a gente se depara com muita coisa, mas não acredito que isso se repita. Não tenho medo!”, assegurou Ivan, negando iniciativas de treinamento da empresa voltadas para situações adversas.

Ressuscitar o assunto tantos anos depois, despertou, ainda que com certa desconfiança e timidez, a memória dos passageiros. Um deles, ao passar a roleta, logo reconheceu o assunto da conversa entre os repórteres e o motorista.

“Era essa linha, né, que ele sequestrou. Já faz um tempão (sic)... Mas eu não tenho medo, não! Eu nem pegava esse ônibus naquela época”, contou o popular, sem querer se identificar.

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