Para além de 20 de novembro: Como ancestralidade negra resiste, ensina e transforma
No Dia da Consciência Negra, veja a importância da cultura afro-brasileira na culinária, arte, religião e nos costumes que se tornaram símbolos de luta e identidade

Trazidos à força para o Brasil como vítimas da escravidão, os africanos resistiram ao apagamento cultural carregando suas tradições e saberes nos próprios corpos, nos cabelos trançados, na culinária, na arte e na religião. Esses elementos se tornaram, ao longo dos séculos, poderosos símbolos de luta e liberdade, moldando a cultura afro-brasileira que, a cada dia, conquista mais reconhecimento e respeito. Em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra convida à reflexão sobre a importância e a dimensão das contribuições históricas e atuais desse povo.
Tranças que amarram o passado com o presente
Um dos traços mais comuns da ancestralidade que o povo negro carrega, são as tranças e os adereços. Ainda na África o penteado era sinônimo de status social, mas no Brasil, se tornou uma ferramenta de auxílio para a divulgação de rotas de fuga.
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“Na minha família todo mundo sabe trançar, sempre foi uma coisa que todo mundo sentava e fazia trança na cabeça do outro, tanto que eu aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a mãe dela, que também já foi escrava, a mãe da minha bisavó. Como a gente sabe, ela (a trança) foi usada para mapear rotas de fuga, para esconder sementes para plantio. E quando você mantém esse cuidado de fazer as tranças, e você traz como uma fonte de renda, mas você transfere esse conhecimento para outra pessoa, que enquanto você está trançando, está explicando. Já teve cinco clientes meus que fizeram as tranças e não sabiam a história por trás”, disse a trancista Amanda Almeida dos Santos, de 21 anos, que trabalha com tranças há 5 anos.

Atualmente as tranças se tornaram trabalho para muitas mulheres negras, que tiveram os primeiros contatos de forma natural, através da família e mais tarde puderam se especializar conhecendo tanto o significado ancestral dos cabelos trançados como também outras técnicas para enriquecer o trabalho.
"Tem muita oficina e palestra que é ministrada, tanto para ensinar a fazer as tranças quanto para contar a história e perpetuar essa parte, não só trabalhando com isso, porque o trabalho é importante sim, mas você levar esse trabalho como forma de conhecimento para outras pessoas, em grande quantidade, acho que dá mais sentido. [...] Tem muita menina que sabe trançar, sabe trançar porque sabe mesmo, mas não trabalha com isso ou não vai mais à frente porque acha que precisa de um curso super específico, só que isso está na gente, faz parte das nossas raízes. Não é só trabalho, é também uma forma de autoconhecimento”, contou Amanda.
Além dos mais diversos formatos de tranças e fios, também há os adereços que contribuem para um visual mais bonito. Porém, esse ato que enfeita as tranças ultrapassa a questão estética, pois antes de chegar no Brasil, já eram usados para se referir à posição social das pessoas.
“Antes da escravidão, as tranças são vistas também como coroa, principalmente pelo lado ancestral, de cultura e religião, nossa cabeça é nosso Ori e tudo que a gente coloca na cabeça traz essa dinâmica. Então, as tranças também eram personalidade, porque com as tranças você conseguia dizer quem era mais pobre, quem era mais rico. Tanto é que as rainhas e as princesas sempre usam tranças extravagantes, com vários acessórios, como ouro, prata. Só que o acessório de trança, hoje, também é mais para embelezar, principalmente para quem gosta de usar acessório para sair”, disse a trancista que ressaltou que os mais usados são miçangas, anel, argola, fitas e pingentes dos mais variados formatos.

Por ser uma forma de manter a ancestralidade viva, as tranças são usadas por homens e mulheres, que encontram através delas uma forma de identificação e bem-estar consigo mesmo. Esse é o caso do estudante Josemar Rodrigues, de 26 anos.
“Eu faço tranças desde que eu tinha 14 anos. A minha irmã também era trancista e antes de fazer as tranças para fora, ela começou a trançar o cabelo das meninas em casa, das minhas sobrinhas e eu sempre gostei dos penteados que ela fazia, o meu cabelo sempre foi pequenininho, mas ela fazia da maneira que sempre pôde. Eu sou retinto e posso dizer que hoje em dia está podendo usar um penteado como esse, para mim é excelente, até mesmo pela questão da identificação mesmo. Antigamente, as pessoas olhavam muito para um lado pejorativo para essa questão das tranças, hoje em dia soa como mais natural e é ótimo poder ser você mesmo”, contou.

Sabores africanos na culinária brasileira
A comida tem o poder de aproximar as pessoas, através dos temperos, pratos especiais e o aroma dos quitutes. Mas além de fazer essa ligação, também consegue manter uma relação com o presente e o passado, colaborando com que histórias de vida sejam lembradas de uma forma saborosa e que culturas sejam preservadas.
Muitos pratos famosos e apreciados pelos brasileiros, como a feijoada, foram criados pelos negros que viviam no Brasil, como uma forma de se alimentar com proteínas, através de carnes não convencionais na época. E também o acarajé, que já pertencia à cultura africana e estava ligada à religião, se tornou popular nas terras brasileiras.
“O povo preto sempre foi muito criativo, por necessidade também, mesmo arrancados de suas terras trouxeram seus saberes e sabores. Meu prato preferido entre muitos é a feijoada. Os escravizados usavam os cortes menos nobres junto ao cozimento do feijão, que é a base da nossa feijoada atualmente”, explicou a cozinheira Ariana Marçal, de 34 anos, que possui um delivery, no Colubandê, em São Gonçalo.

Olhando para o passado, as comidas também foram uma forma de resistência, para assegurar que a cultura africana não sofresse um apagamento, pela crueldade da escravidão e pelo tempo.
“Durante séculos, uma das nossas principais formas de resistência e preservação cultural foi através da culinária. Mesmo em condições duras, o povo preto manteve vivo seu modo de cozinhar, seus temperos, seus rituais etc. Muitos dos pratos que hoje são símbolos do Brasil nasceram dessas mãos. É um legado que atravessou gerações e segue pulsando na nossa mesa. [...] Quando cozinho, não estou apenas fazendo um prato, estou continuando uma história, minha cozinha é a forma mais bonita de manter viva a memória e a força da minha linhagem”, contou a cozinheira.

Além de uma boa comida, um restaurante precisa de atendimento de qualidade para ganhar destaque dentro do ramo alimentício. Com isso, profissionais precisam ser treinados e incentivados, e é nessa parte que os gestores operam. Atualmente, a referência nessa função é a vencedora do Prêmio Gastronomia Preta 2025, Bruna Batista da Silva, de 34 anos, e também moradora de São Gonçalo.
De acordo com Bruna, o começo de sua carreira não foi fácil, pois além do trabalho árduo precisava a todo instante demonstrar que sabia realizar as funções com maestria, para que pudesse ser ouvida e respeitada.
“É um desafio duplo, por ser mulher em um setor ainda dominado por homens e por ser uma mulher preta. A minha presença sempre causa um impacto, porque não é comum ter uma mulher com as minhas características encabeçando equipes no setor gastronômico. Mas em contrapartida percebo pessoas ao meu redor se inspirando e acreditando muito no trabalho que desenvolvo, principalmente mulheres pretas. Como todo processo de desconstrução é desafiador em aspectos técnicos, físicos e mentais. Por muito tempo tive a sensação de ter que trabalhar duas vezes mais para que eu pudesse ser reconhecida, credibilizada, que as minhas ideias fossem aceitas, que eu deixasse de ser a pessoa que pedia oportunidades para ser a referência. Por muito tempo procurei pessoas como eu, referências de gestores pretos e não encontrei. Entendi que precisaria abrir alguns caminhos. Hoje compreendo que há 10 anos atrás éramos menos do que somos hoje e sem visibilidade, então era difícil mesmo encontrar uma referência”, contou a gestora.

A presença de Bruna e tantas outras pessoas negras que lideram equipes e projetos, pode ser considerada uma forma de resistência, pois reforça a importância das ações de representatividade e inclusão em uma sociedade tão diversa, como a do Brasil.
“É fundamental para promover diversidade, inclusão e representatividade. Precisamos quebrar estereótipos e fazer com que jovens pretos acreditem que é possível chegar lá! A culinária negra é uma parte importante da cultura brasileira, e ter pessoas negras à frente de restaurantes ajuda a preservar e promover as nossas raízes. A presença de pessoas negras em cargos de liderança ajuda a criar um ambiente mais acolhedor e mais humano. Em grande maioria saímos de comunidades e periferias, entendemos as dores de quem é dessa realidade, entendemos os desafios diários, entendemos o processo de desconstrução até se chegar à segurança de ser quem somos. Acredito que a maioria de nós não só serve comida, carregamos a responsabilidade de abrir caminhos para os nossos. Não é só trabalho, é representatividade social!”, disse Bruna.
Para a atual vencedora da categoria Gestão, do Prêmio Gastronomia Preta 2025, levar o troféu para casa representa que venceu os desafios encontrados na sua vida, mas que também há um novo espaço para as pessoas pretas terem seus trabalhos devidamente reconhecidos, assim incentivando que outras pessoas sigam os seus passos.
“Sentimento de gratidão, sinto a vida me fazendo um carinho depois de tantos desafios. O Festival é incrível, tenho conhecido muitas pessoas através do festival, muitas referências que assim como eu, estavam por aí fazendo os seus corres e também não tinham visibilidade. O prêmio tem sido um divisor de águas e tem me aberto caminhos que jamais imaginei. [...] Não é um festival só sobre gastronomia, é um festival do nosso povo, é um aquilombamento, é ancestralidade. É resgatar a autoestima de mãos que alimentaram uma nação inteira”, revelou Bruna.

Arte resgata o passado e conta um novo futuro
A ancestralidade também está presente na arte, seja por meio da música, de peças teatrais, literatura, pinturas e tantas outras. Atualmente, a arte é uma ferramenta de transformação social valiosa, oferecendo para jovens uma oportunidade de dar vida às histórias de seus antepassados, e também ocupar um espaço ainda muito limitado, mas que a cada dia se abre mais.
"Eu acredito que o teatro, a arte, pode ser uma forma de representatividade desde o momento que a gente começa a salvar vidas, como um dia a arte, o cinema, salvou a minha vida, quando eu não tinha um caminho, não tinha exatamente uma direção, mas eu vi pessoas que me representavam pelo fato de ser preto, vim de onde venho e estar lá ganhando espaço, com papéis, com falas, no cinema, foi algo que me marcou em ver essas pessoas como referências, que foi o Raphael Logan. Eu o vi atuando e aquilo mexeu de forma muito impactante na minha vida, onde eu quis aquilo para a minha vida, comecei a desejar, buscar, estudar, até que tive o primeiro contato com o audiovisual e comecei a atuar. Então acredito que é isso, a cada personagem, a cada papel, a gente ganha espaço, abre caminho para as pessoas que nos assistem”, disse o ator Wellington Alves, de 24 anos, mais conhecido como Fumassa Alves, ator e morador da Comunidade da Alma, em São Gonçalo.

Especificamente o teatro, é uma forma de resistência, pois através dos personagens é contada uma história que representa a realidade de muitas pessoas pretas nos dias atuais, mas também não se deixa perder a memória dos antepassados.
“A gente diz uma frase que é muita verdade: ‘a arte imita a vida’, eu acho que é dessa forma, imitando a vida que o teatro se torna ato de resistência e de identidade, dando vozes a todo povo que é silenciado, que é esquecido, que é oprimido, que é ocultado de uma realidade. Eu acho que se torna uma identidade e resistência dessa forma, imitando a vida”, contou o ator gonçalense, que acrescentou que grupos de teatro de rua ou comunitários que abordam temas como pobreza, racismo, política e desigualdade social, estão sendo uma forma de resistência cultural e social.
Ações sociais ligadas à ancestralidade
Atualmente, muitos negros ainda sofrem as amarguras do racismo, do puro preconceito apenas pela cor de pele e outras características físicas. Como percebido pelos dados obtidos através de uma pesquisa apoiada pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR), em maio deste ano, a qual aponta que de cada 100 pessoas pretas, 84 afirmaram que já foram vítimas de discriminação racial. Tal cenário é percebido por essas pessoas quando são destratadas ou recebem tratamento inferior em estabelecimentos apenas por serem negros.
Em busca de lutar contra essa realidade, inúmeras pessoas se levantam como líderes de suas comunidades, reivindicando o seu espaço e ampliando as vozes das pessoas nos ambientes dominados por pessoas brancas.
“Minha trajetória começou aos 22 anos de idade quando cheguei no Conselho Estadual dos Direitos da Mulher - CEDIM-RJ. O Conselho estava bem no início e eu fui contratada como assessora da presidência. A sede do CEDIM-RJ era no Palácio Guanabara, um espaço do alto poder branco. Percebi de primeira que ali era o meu lugar. Muitas mulheres com trajetórias reconhecidas na luta pela emancipação feminina e eu com a minha pele preta que destoava da maioria. Mas, encontrei um lugar de acolhimento, onde fui alvo de ações afirmativas e onde fui a primeira mulher negra, e talvez a única até hoje, a ocupar a presidência do principal mecanismo de políticas para as mulheres, do estado do Rio de Janeiro”, contou a líder social Leila Araujo, de 59 anos.

Uma das ações mais atuais da líder social, visa levar para as mulheres pretas, o conhecimento da agricultura, um dos diversos saberes que ajudam a aproximar essas pessoas da natureza, mas também da ancestralidade.
“Desde 2022, venho desenvolvendo, junto com a UFF, o projeto Artemisia - Escola de Mulheres e Bioeconomia - Letramento Social e Empreendedorismo Feminino no Cultivo de Ervas Medicinais e na Produção de Saboaria Natural. Agricultura e Saboaria são saberes ancestrais que precisam ser resgatados e valorizados, pois têm grande poder de promover saúde, cooperação, preservação da natureza e ainda geração de renda para as mulheres. Construir com as mulheres da periferia, caminhos de resgate desses valores e práticas ancestrais, tem sido o alvo de Artemisia. Além de promover a autonomia social e econômica das mulheres, nosso trabalho, em 10 territórios do Estado do Rio de Janeiro, quer fortalecer grupos de mulheres para o protagonismo social e a transformação das realidades locais. De passo em passo, vamos retomando o nosso caminho desvirtuado pelo racismo estrutural”, disse Leila Araújo.
Religiões de matriz africana ferramenta de resistência
Um dos elementos que vieram com o povo negro, foi sua fé nos orixás, esses cultuados com liberdade na África, mas no Brasil, foram rejeitados pela sociedade, o que fez com que os negros praticassem a religião de forma secreta, recorrendo até mesmo ao sincretismo, ato de associar os orixás aos santos da igreja Católica, para burlar a proibição. Atualmente, a população negra e os adeptos das religiões de matriz africana, podem cultuar os orixás com liberdade, graças à resistência de seus ancestrais, que proporcionou que a fé fosse passada de geração em geração.
As características encontradas no Candomblé, são utilizadas como uma forma de relembrar os acontecimentos do passado, mas também uma forma de perpetuar a cultura africana.
“As comidas, as rezas, as roupas e os costumes trouxeram um pouco de cada território invadido que aqui foi obrigado a criar um novo elo entre as nações Africanas, surgindo o Candomblé. Assim a história não nos permite esquecer dos antepassados escravizados, mas também a manutenção das regras faz com que a tradição se perpetue. Isso não é apenas uma história, e sim a confirmação dos laços ancestrais familiares que muitas vezes são perdidos através da falta de documentação ou da violência sofrida pela população negra”, explicou Paulo Roberto da Conceição Barboza, conhecido como Babalorixá Paulo Mejêjê, com 20 anos no Candomblé.

Em 2024, o canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), revelou que as religiões que mais foram alvos de violações foram a Umbanda e o Candomblé, respectivamente. Em números isso significa que a Umbanda registrou 234 casos e o Candomblé 214, apenas no ano passado.
Com base nesses dados, fica evidente a importância das religiões serem um espaço de resistência, pois é através delas que se encontram forças para buscar as melhorias desse cenário.
“O Candomblé é resistência na luta diária dentro de uma sociedade racista, é a luta pela preservação da natureza que nos alimenta e nos dá força através dos Orixás para seguirmos na luta diária. O Candomblé é sobre justiça social, a troca que não pode desvalorizar ou explorar o outro”, explicou o Babalorixá.
Conhecimento da ancestralidade
Em busca de colaborar com a disseminação das religiões de matriz africana, aliadas ao conhecimento e respeito, são realizadas ações por terreiros para resistir contra o preconceito.
“Ajudo a manter a memória do nosso povo através de roda de conversas, de saberes e fazeres como nossos ancestrais. [...] A resistência é necessária pois o racismo é real, motivo por ser cultura e religião de pretos e não admitido. Toda nossa cooperação para a formação de uma sociedade mais justa”, disse a Mãe Márcia d’Oxum, nascida e criada em terreiro.

O trabalho desenvolvido a partir dessa iniciativa, não se limita apenas aos terreiros, mas alcança também as palavras, uma vez que Mãe Márcia d’Oxum, escreveu livros voltados para os conhecimentos dos Orixás e até mesmo uma biblioteca ancestral. O conhecimento artístico, não fica de fora, pois através de exposições também é explorado ainda mais o tema da religião.
A cultura africana está diretamente relacionada a muitos aspectos culturais do Brasil, e isso só foi possível graças à1 força e resistência do povo preto.
Sob supervisão de Marcela Freitas