Papel que floresce: como negócio em São Gonçalo transforma resíduos em impacto positivo
Empreendimento com sede em Guaxindiba transforma papel reciclado em produto plantável e sustentável

O que começou com uma carta curiosa vinda da Inglaterra, virou um negócio pioneiro e premiado que une consciência ambiental, inclusão social e inovação. A Papel Semente, localizada em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, nasceu em 2009 da ideia de transformar papel reciclado em um produto que, além de útil, pudesse ser plantado.
A semente da ideia germinou quando os fundadores Paulo Candian, Andréa Carvalho e Luis Felipe Di Mare viram, pela primeira vez, um papel que poderia ser plantado.
“Eu, Andrea e Luis, morávamos em São Paulo e trabalhávamos em uma ONG. Na época, eu era do comercial e recebi uma carta de uma ação da Honda, da Inglaterra, que lançava carros híbridos. O convite era feito em um papel que podia ser plantado. Achei incrível e começamos a desenvolver a ideia”, relembra Paulo Candian, hoje diretor de produção da Papel Semente.

Mais do que o lucro pelo lucro, o empreendedorismo social e ambiental surge como uma resposta inovadora e transformadora às desigualdades estruturais e aos desafios ecológicos contemporâneos, especialmente em contextos de vulnerabilidade socioeconômica.
Autores como Muhammad Yunus, vencedor do Prêmio Nobel da Paz e criador do conceito de "negócio social", defendem que iniciativas empreendedoras com propósito social não apenas geram renda e emprego, mas também solucionam problemas concretos da sociedade, como exclusão, degradação ambiental e falta de acesso a recursos.
Em regiões periféricas como em vários bairros de São Gonçalo, esse tipo de iniciativa como da Papel Semente desempenha um papel ainda mais potente ao promover inclusão produtiva, além de gerar pertencimento e identidade comunitária por meio do trabalho local.

A proposta da empresa é clara: ressignificar o papel usado, adquirido de cooperativas de catadores, e transformá-lo em um novo produto que carrega sementes em sua composição. Dessa forma, ao ser descartado, o papel pode ser plantado e dar origem a flores, temperos e hortaliças.
“O nosso objetivo é fazer essa mudança, de usar o papel comum para reutilizá-lo de forma correta. Ele vira um novo papel que, além de comunicar, pode virar uma horta, um jardim”, explica Paulo.
A perspectiva de negócios com impacto ambiental positivo é amplamente discutida por autores como Elkington (1997), criador do conceito do "Triple Bottom Line", que valoriza o equilíbrio entre lucro, pessoas e planeta. No caso da Papel Semente, o tripé é evidente: o negócio impulsiona a economia local, ao mesmo tempo que minimiza resíduos e reeduca o consumo. Em locais onde políticas públicas nem sempre alcançam de forma eficaz, empresas como essa assumem um papel quase cívico, fortalecendo o tecido social e inspirando outras iniciativas sustentáveis.

Nesse sentido, a escolha por São Gonçalo como sede da fábrica foi estratégica, considerando clima, localização e um importante fator humano: a geração de empregos locais. O terreno, que era da família de um dos sócios, tornou-se o ponto de partida para um negócio com raízes profundas na comunidade.
“Pensamos muito na comunidade. Quando construímos a fábrica, recebemos de 200 a 300 currículos de moradores. Então, optamos por contratar e treinar quem vive aqui. Isso é parte essencial do nosso trabalho”, conta o diretor.
Hoje, a Papel Semente emprega 25 pessoas, distribuídas entre áreas como produção, administrativo e comercial, a maior parte residente do bairro Bom Retiro.
A atuação da empresa já rendeu reconhecimentos importantes. A Papel Semente possui os selos Amiga da Mulher e Amiga da Criança, além da cobiçada certificação B Corp, que atesta o impacto social e ambiental positivo do negócio.

“A empresa hoje tem o selo Amiga da Mulher, da Criança, e somos certificados B desde 2018 ou 2019. A cada dois anos, passamos por auditorias que avaliam e estimulam melhorias, tanto para o meio ambiente quanto para os colaboradores”, destaca Paulo.
A empresa também ostenta o Selo Frete Neutro, que compensa emissões de carbono do transporte de seus produtos, e o Selo Empresa de Boas Práticas pelo Clima, concedido pela Prefeitura de Niterói.

Do ponto de vista macroeconômico, negócios de impacto também são fundamentais para o fortalecimento da economia brasileira, pois aliam inovação, responsabilidade social e rentabilidade.
Segundo pesquisa da Aspen Network of Development Entrepreneurs (ANDE), os investimentos em negócios de impacto no Brasil somaram pelo menos R$ 1 bilhão em 2020, um dado que evidencia o potencial desse setor como motor de desenvolvimento sustentável e inclusão.

Da coleta ao plantio: como nasce o papel semente

O processo de produção é majoritariamente artesanal, dividida em etapas que respeitam o meio ambiente e valorizam o trabalho local.
1ª Etapa – Recebimento e seleção do papel
O papel comum chega à fábrica vindo de cooperativas de catadores. Geralmente são folhas descartadas por escolas, bancos e instituições. Antes de entrar na produção, os materiais passam por uma triagem rigorosa. São retirados objetos como grampos, clipes e plásticos, além de separar o papel colorido, que pode interferir no produto final.
“Os catadores fazem a coleta e a gente compra deles. Aqui, fazemos uma limpeza para garantir que o papel seja adequado para virar polpa. Se tiver muita cor ou resíduo, ele aparece na folha”, explica Paulo.
2ª Etapa – Transformação em polpa
Depois de limpo, o papel é colocado em uma máquina chamada Hidrapulper, que funciona como um grande liquidificador com capacidade para até 200 litros. Ali, o papel é triturado e misturado com água, criando a polpa que será base do novo papel.
“Essa polpa é a matéria-prima do nosso papel semente. É a partir dela que moldamos as folhas e incorporamos as sementes”, conta o diretor.
3ª Etapa – Moldagem e inserção das sementes
A polpa é retirada da máquina e transferida para tanques. Com baldes, os funcionários despejam a mistura sobre telas de moldagem, distribuindo as sementes conforme o tipo de papel desejado. Por ano, a empresa fabrica cerca de 150 mil folhas.
“Com 10 baldes da polpa, conseguimos fazer em torno de 60 folhas. Cada folha recebe as sementes conforme o pedido do cliente”, detalha Paulo.
4ª Etapa – Secagem ao sol
As folhas com sementes são levadas para secar em varais ao ar livre. A secagem natural dura entre uma e duas horas, dependendo da intensidade do sol. No verão, o processo é mais rápido.
“Elas secam ao sol, porque se secar na máquina, pode danificar. No calor forte, temos que ficar atentos para que não entortem ou se soltem das telas”, diz.
5ª Etapa – Corte inicial e classificação
Com as folhas secas, os funcionários as separam conforme o tipo de semente incorporada. Depois, são cortadas no formato A4 e, a partir dali, divididas em tamanhos menores, conforme o uso final.
“Cada folha grande pode render até quatro folhas A4. Esse é o formato base para os próximos passos”, explica o diretor.
6ª Etapa – Acabamento e design gráfico
As folhas seguem para a área de corte e design, onde são ajustadas ao tamanho e formato solicitados — convites, cartões, tags, crachás e outros itens personalizados.
“Aqui usamos impressoras jato de tinta, pois a tinta é à base de água. Não usamos solventes, já que o papel será plantado e precisa ser seguro para o solo”, detalha Paulo.
7ª Etapa – Controle de qualidade
Antes da impressão final, cada folha é inspecionada. Folhas com pequenos defeitos são reaproveitadas ou ajustadas.
“Temos uma equipe que revisa folha por folha. Qualquer problema, a folha volta para reaproveitamento. Nada é desperdiçado”, ressalta.
8ª Etapa – Personalização dos pedidos
Na unidade comercial, em Niterói, os pedidos são organizados e as artes são criadas conforme a demanda. Os designers preparam os arquivos gráficos que serão impressos nas folhas com sementes.
“Recebemos pedidos como ‘85 convites, de 15x15 cm, com semente de margarida’. As folhas são separadas e levadas para impressão com base no layout criado”, explica Paulo.

9ª Etapa – Impressão final
As folhas vão para a área de impressão. Como o papel é irregular, por conta da textura e da presença das sementes, a impressão é feita com equipamentos adaptados.
“A tinta à base de água é essencial para garantir que o papel seja seguro para o plantio”, reforça.
10ª Etapa – Corte personalizado
A empresa possui cerca de 3 mil moldes. Os cortes são feitos de acordo com os formatos exigidos pelo cliente: leques, corações, folhas, máscaras, tags de roupas, entre outros.
“Temos moldes para tudo: árvores, flores, estrelas. Se o cliente quer algo novo, desenvolvemos com parceiros”, diz.
11ª Etapa – Embalagem e envio
Na etapa final, os produtos passam por pré-montagem e embalagem. Tudo é feito com o mesmo cuidado: sem plásticos e com materiais recicláveis.
“Entre os produtos mais pedidos estão convites, embalagens para sabonetes, crachás e pulseiras. Tudo pode ser plantado depois do uso”, diz Paulo.
Em um cenário onde os modelos tradicionais de produção e consumo mostram sinais de esgotamento, negócios como a Papel Semente apontam para uma economia possível e necessária baseada em regeneração, pertencimento e propósito.
Para os sócios, ao transformar resíduos em oportunidade, e convites em jardins, a empresa demonstra que impacto positivo e resultado financeiro não são caminhos opostos. Pelo contrário: podem, juntos, reescrever o futuro do trabalho, do meio ambiente e das relações com o território.