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Geração C: os impactos na vida de crianças nascidas durante e pós-pandemia

Em entrevista a O SÃO GONÇALO, mães e especialistas falam sobre as consequências do período pandêmico no presente e no futuro dessa nova geração

relogio min de leitura | Escrito por Lara Neves, Lívia Mendonça e Maria Clara Machado | 20 de maio de 2023 - 11:00
Geração C nomina crianças nascidas a partir de 2019, diretamente impactadas pelos efeitos da covid-19
Geração C nomina crianças nascidas a partir de 2019, diretamente impactadas pelos efeitos da covid-19 -

Gerações Baby Boomers, X, Y (ou millennials), Z e Alfa. Você já deve ter ouvido falar nessas nomenclaturas e provavelmente pesquisado para saber à qual geração pertence. Acontece que depois da pandemia da covid-19, um novo termo começou a ser ventilado entre estudiosos para nominar a nova geração de bebês, crianças e jovens diretamente afetados pelo período: a geração C. 

Quando o coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, o pensamento inicial de grande parte da população era de que a onda de paralisações fosse algo de curta duração. Agora, três anos após uma das maiores tragédias, que deixou cerca de 15 milhões de mortos em todo o mundo, a perspectiva é outra e a compreensão dos impactos a curto, médio e longo prazo, mudou. 

Para abordar as mudanças que podem causar (e já estão causando) efeitos em cascata na vida dessas crianças no futuro, especialistas começaram a usar o novo termo (Geração C). No entanto, ainda há alguma divergência de opiniões quanto à definição de quando esta geração começa e quando termina.

Fato é que as consequências foram notadas em vários aspectos como saúde física, mental e psicológica;  educação, família, integração com a tecnologia, incluindo impacto na economia e emprego a longo prazo. São alguns desses aspectos, a partir da ótica de especialistas e mães da Geração C, que vamos abordar nesta reportagem.

Primeiro momento: o fechamento das escolas

Você deve lembrar, foi ligeiramente após o Carnaval de 2020 que o Brasil "parou" de fato. De 1º de abril de 2020 a 31 de março de 2022, as escolas no Brasil ficaram totalmente fechadas por 44% do tempo. 

Um estudo do Banco Mundial constatou que, entre março de 2020 e março de 2022, uma criança havia perdido um ano de escolaridade presencial devido ao fechamento da escola – na América Latina, as crianças perderam 1,7 ano por causa de fechamentos escolares particularmente longos.

Para cada 30 dias de fechamento das escolas, os alunos perderam 32 dias de aprendizagem.
 

EM NÚMEROS: Prejuízo escolar a médio e longo prazo 

As matrículas no pré-escolar diminuíram e mantiveram-se em baixa em mais de 13% no final de 2021 no Brasil, face ao que teria sido previsto na ausência da pandemia. Além disso, os declínios nas matrículas escolares foram maiores entre crianças em famílias de menor nível socioeconômico. Em vários países, crianças em idade pré-escolar perderam mais de 34% da aprendizagem de linguagem e alfabetização e mais de 29% da aprendizagem em matemática, em comparação aos índices pré-pandemia.

Em muitos países, mesmo após a reabertura das escolas, as matrículas na pré-escola não haviam se recuperado até o final de 2021; tendo caído mais de 10 pontos percentuais em diversos países. As crianças também enfrentaram maior insegurança alimentar durante a pandemia.

Entre as crianças em idade escolar, em média, para cada 30 dias de fechamento das escolas, os alunos perderam 32 dias de aprendizagem. Isso ocorre porque o fechamento das escolas e as medidas ineficazes de ensino remoto fizeram com que os alunos deixassem de aprender, além de esquecerem o que já haviam aprendido.

Em países de renda baixa e média, quase um bilhão de crianças perdeu pelo menos um ano inteiro de ensino presencial devido ao fechamento de escolas e mais de 700 milhões perderam um ano e meio. Como resultado, a pobreza de aprendizagem – que havia atingido 57% antes da pandemia – aumentou ainda mais nesses países, e cerca de 70% das crianças de 10 anos são incapazes de entender um texto básico.

“Fechamento de escolas, lockdowns e interrupções nos serviços durante a pandemia ameaçaram acabar com décadas de progresso na construção de capital humano de várias gerações", disse o Presidente do Grupo Banco Mundial, David Malpass.

segundo momento: O desafio da educação remota

Para a vendedora Adriana Gouveia, de 33 anos, moradora de São Gonçalo, o fácil e recorrente acesso à internet foi um grande desafio durante a pandemia, onde seu filho, Luan, de 13 anos, que havia acabado de iniciar o ensino fundamental II, precisou de ajuda para manter o foco nas tarefas escolares. 

Adriana Gouveia e Luan
Adriana Gouveia e Luan |  Foto: Divulgação
 

"O Luan é muito desatento e sempre gostou de jogar videogame e jogos no celular, o que foi um problema para a gente. Ele não tinha um celular só dele, então tivemos que comprar na pandemia, para ele conseguir assistir às aulas, mas ele começou a baixar muitos jogos e ficar mais desatento. Eu trabalhava com o público, então fiquei desocupada na pandemia, que foi o que salvou, pois consegui criar uma rotina de estudos com ele", disse a vendedora. 

Já para a economista Renata Lopes, de 45 anos, o desafio da pandemia foi em dose dupla. O filho mais velho estava em período de estudos para realizar a prova do ENEM e a filha mais nova, de 7 anos, iniciava a pré-escola e alfabetização".

Renata Lopes e Maria Eduarda
Renata Lopes e Maria Eduarda |  Foto: Divulgação
 

"As dificuldades de aprendizado durante esse período foram muitas. Minha filha Maria Eduarda começou a aprender a ler e escrever na quarentena. Agora imagina isso em uma casa com um irmão no ensino médio estudando para o ENEM e os pais trabalhando home office? Foi muito complicado, muitas coisas da aprendizagem dela foram atrasadas pela pandemia", contou Renata. 

Sem ferramentas suficientes e sem a opção de recrutar ajuda familiar, os pais tiveram que assumir o papel de cuidadores em tempo integral, além de educadores. Tudo isso acontecia enquanto tentavam gerenciar seus próprios empregos em casa, lidando com potenciais ameaças à saúde e, para alguns, crescentes pressões financeiras. 

Para a moradora do Porto da Pedra, em São Gonçalo, professora e tatuadora Viviane Fonseca, mãe do Joaquim, de 13 anos, que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), a experiência foi desafiadora tanto para ele quanto para ela mesma. 

"O Joaquim é autista e sempre teve crises sensoriais, que acabaram sendo evidenciadas durante a pandemia. Isso acabou culminando com as minhas próprias questões, já que trato síndrome do pânico há muito tempo e durante esse período estressante só piorou. Como crio ele sozinha, meu maior medo era pensar que eu poderia morrer e iria deixar ele. Foi um período muito difícil", contou Viviane. 

Viviane Fonseca e Joaquim
Viviane Fonseca e Joaquim |  Foto: Divulgação
 

Autistas são especialmente vulneráveis ​​às condições de isolamento prolongado, segundo pesquisas. Esse fator resulta diretamente nos resultados obtidos por crianças portadoras de TEA no âmbito educacional, especificamente o ensino remoto.

Com o confinamento domiciliar e o fechamento de sistemas de educação, ocorreu o desligamento presencial de todas as redes de ensino. A medida significou a perda de uma rede de apoio composta, por exemplo, por professores, assistentes sociais e profissionais de saúde. 

Durante esse período de isolamento social, crianças autistas e seus pais precisaram se reinventar e descobrir novos métodos eficientes para atravessar um momento tão conturbado fora, mas também dentro de casa. 

"Meu filho regrediu bastante nesse período. No início, ele fazia terapia em um posto perto de casa e com a pandemia precisou parar. Ele sempre teve muita dificuldade de interação social e, antes do isolamento, estava em uma fase de evolução, tendo mais proximidade com os colegas de turma, por exemplo", afirmou a mãe de Joaquim. 

Efeitos na saúde mental

O que começou como uma emergência de saúde pública, acabou se tornando uma crise de saúde mental para crianças e adolescentes. Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), dados coletados durante e no pós pandemia “revelam um novo normal devastador e distorcido para as crianças do mundo”.

Pelo menos uma em cada sete crianças foi diretamente afetada por lockdowns.
 

No principal relatório da organização no ano de 2021, que esteve focado na saúde mental de crianças, adolescentes e cuidadores no século 21, o impacto da Covid-19 poderá ser sentido por muitos anos. 

O texto afirma que mesmo antes da pandemia, crianças, adolescentes e jovens já carregavam o fardo das condições de saúde mental sem um investimento significativo para resolvê-los.

Globalmente, de acordo com a Unicef, pelo menos uma em cada sete crianças foi diretamente afetada por lockdowns, enquanto mais de 1,6 bilhão de crianças sofreram alguma perda relacionada à educação. 

A ruptura com as rotinas, a educação, a recreação e a preocupação com a renda familiar e com a saúde tem deixado crianças e jovens com medo, irritados e preocupados com seu futuro. 

"Em muitos dias ela ficava ansiosa, não queria assistir às aulas porque sentia que não ia conseguir fazer os deveres com a turma ou responder quando a professora perguntasse. Ela não gostava de fazer dever de casa porque não sabia responder e se estressava, era uma luta", declarou Renata, mãe da estudante Maria Eduarda, de 7 anos.

'Novo normal' nem tão normal assim

Uma pesquisa da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, comparou a evolução esperada de bebês de 6 meses nascidos antes e durante a pandemia. O resultado foi notado pelos  especialistas, que notaram que os que chegaram ao mundo em meio ao isolamento tiveram pontuações mais baixas no desenvolvimento motor (fator importante para virar sozinho de barriga para baixo e pegar um brinquedo com as mãos, por exemplo)  e no desenvolvimento socioemocional, aquele que molda o convívio com pessoas fora do círculo familiar.

Para o Doutor em Antropologia, Pesquisador e Professor Especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela UFF, Marcos Verissimo, "fica difícil imaginar quais serão os impactos no médio e longo prazo, justamente por conta do caráter excepcional da pandemia e seus efeitos, que tiram um pouco de nossos parâmetros de análise. E o que vimos quando se deu o retorno estável das aulas, foi o recrudescimento dos conflitos escolares". 

Educação remota
Educação remota |  Foto: Divulgação
 

Brasil - As instituições de ensino também sentiram o impacto direto de um novo modelo de educação, principalmente pela falta de preparo de ambientes escolares, principalmente públicos, para promover um ensino a distância de qualidade para todos. 

Juntamente a esse cenário, a falta de acesso às ferramentas digitais, que atinge 30% das residências no Brasil, segundo a pesquisa TIC Domicílios, do IBGE, foi evidenciada pela pandemia. A exclusão digital, que é um problema antigo no Brasil, ficou ainda mais em destaque durante esse período.

De acordo com a pesquisa “O abismo digital no Brasil”, da PwC, apenas 29% da população brasileira pode ser considerada “plenamente conectada”, enquanto 20% não tem conexão alguma. Ou seja, uma em cada cinco pessoas no Brasil vive sem nenhum tipo de acesso à internet. 

Estudantes de 2023 podem perder até 10% dos seus ganhos futuros em razão da doença.
 

Lenta recuperação e um novo olhar para o futuro

Um relatório divulgado pelo Banco Mundial, intitulado "Colapso e Recuperação: como a pandemia de Covid-19 deteriorou o capital humano e o que fazer a respeito", detalha o impacto devastador da doença na educação e no acesso ao emprego para a geração de 0 a 24 anos. Ao analisar como a pandemia afetou o desenvolvimento cognitivo e educacional dessa parcela da população, o estudo concluiu que os estudantes de 2023 podem perder até 10% dos seus ganhos futuros em razão da doença. No caso das crianças, o déficit cognitivo ameaça resultar em uma perda de até 25% dos rendimentos quando elas atingirem a idade adulta. 

A pandemia prejudicou, fortemente, duas bases essenciais para a criança e o jovem: a escola e o emprego
 

"Os efeitos dessa desescolarização forçada dos processos educativos, e também nos processos de socialização em geral, a médio e a longo prazo, vão depender da forma como estes conflitos decorrentes de reencaixes institucionais doídos vão ser administrados no momento atual, pelos adultos, que também estão sofrendo, e de como todo esse sofrimento vai ser trabalhado pelas instituições sociais, entre as quais a escola em destaque", afirma o professor Marcos Verissimo. 

A pandemia do covid-19 prejudicou, fortemente, duas bases essenciais para a criança e o jovem: a escola e o emprego. Além de afastar os alunos da sala de aula e submetê-los ao ensino remoto, a emergência sanitária resultou no fechamento de postos de trabalho para quem está iniciando a vida profissional. No relatório do Banco Mundial, é ressaltado, em particular, o crescimento preocupante da geração "nem-nem", que são os cidadãos que não estudam nem trabalham.

Esperança em meio ao caos?

Imagem ilustrativa da imagem Geração C: os impactos na vida de crianças nascidas durante e pós-pandemia
 

Por mais difícil que seja esse novo olhar sobre o presente e o futuro de uma nova geração, extremamente impactada por uma grande tragédia mundial, que causou mortes e consequências consideradas permanentes na sociedade, especialistas afirmam que existem pontos positivos que podem ser tirados do meio do caos. 

A nova realidade fez com que as pessoas desenvolvessem a criatividade para solucionar dos mais simples problemas aos mais complexos desafios. Além disso, houve um grande desenvolvimento na flexibilidade cognitiva, ou seja, pensar por diferentes pontos de vista sobre um mesmo assunto.

“Os países precisam traçar um novo rumo para maiores investimentos em capital humano para ajudar os cidadãos a se tornarem mais resilientes às ameaças de choques na saúde, conflitos, crescimento lento e mudanças climáticas e também estabelecer uma base sólida para um crescimento mais rápido e inclusivo”.

Por piores que tenham sido os impactos da pandemia na educação, considerando o sistema atual, eles ao menos anteciparam questões do futuro, como a desintegração das barreiras físicas para a comunicação e a promoção da autonomia e do protagonismo dos alunos.

"Se for para encarar os problemas, e aproveitar que o incômodo está posto, e então promover o debate com amplos setores das sociedades para a criação de novos consensos, de preferência mais inclusivos, o resultado de todo este choque pós-pandemia pode ser, em parte, positivo", completa o professor e doutor Marcos Verissimo.

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