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Mulher preta é resgatada após 50 anos de trabalho em condições análogas à escravidão

Vítima se emocionou durante entrevista com repórter da TV Bahia. Confira vídeo!

relogio min de leitura | Escrito por * Pedro Di Marco | 29 de abril de 2022 - 17:37
Madalena Santiago da Silva, de 62 anos
Madalena Santiago da Silva, de 62 anos -

Uma mulher preta, identificada como Madalena Santiago da Silva, de 62 anos, foi resgatada por auditores-fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) após 50 anos em condições de trabalho análogas a escravidão, em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, Bahia.

Madalena conta que trabalhava para a família desde seus 12 anos de idade, quando seu pai a deixou seguir com os empregadores para Itabuna. Anos depois, com a mudança dos patrões para Vitória da Conquista, ela foi proibida de deixar a residência onde trabalhava e perdeu o contato com seus familiares. Durante seu tempo com a família, a vítima relata ter sofrido diversos maus-tratos e abusos, tanto físicos quanto psicológicos, por parte dos patrões.

O terror vivenciado pela doméstica foi tamanho que, durante reportagem da TV Bahia, afiliada a TV GLOBO, ela chorou ao encostar na mão da jornalista branca, Adriana Oliveira, afirmando ter ficado com receio de pegar em sua mão por ‘achar feio’ ver sua mão preta em cima de uma mão branca.

"Sua mão é linda, sua cor é linda. Olhe para mim, aqui não tem diferença. O tom é diferente, mas você é mulher, eu sou mulher. Os mesmos direitos e o mesmo respeito que todo mundo tem comigo, tem que ter com você.", afirmou a jornalista da TV Bahia enquanto tentava confortar a vítima.

A psicóloga Roberta Massot explica que os anos de trabalho em condições análogos a escravidão podem ter desenvolvido diversos transtornos psicológicos em Madalena, como crise do pânico, fobia social e depressão, entre outros. Segundo ela, a situação a que a doméstica foi submetida, enquanto mulher preta, é sintomática da estrutura racista em que vivemos e sua reação durante o encontro com a repórter da TV Bahia é prova disto.

“Ela viveu como uma escrava desde os seus 12 anos, imagina quantas violências ela já viveu, tudo que ela deve ter sofrido nas mãos de seus opressores. Para ela, olhar para uma pessoa branca, é olhar para um algoz, é trazer à memória tudo que ela sofreu. O toque de uma pessoa branca nela, com certeza não foi toque de afeto, mas sim de agressão e quando ela diz que é feio a cor dela perto da cor branca, com certeza a mesma está reproduzindo uma fala, provavelmente ouviu isso a sua vida toda. O racismo ensina nós pretos a odiarmos a nossa cor, nosso cabelo, nariz, boca, nos ensina o auto ódio.”, explicou

“A sociedade é conivente com isso a partir do momento que não fala sobre o racismo, que não olha para ele, que minimiza, inferioriza e não dá crédito e nem voz ao negro. Hoje quando uma pessoa negra fala de sua dor, é chamado de 'mimizento' ou 'vitimista'. Muitos falam que antigamente não era assim, que podiam chamar qualquer um de macaco e a brincadeira continuava numa boa. A diferença é que hoje estamos mais fortalecidos e cansados de sermos violentados Quando os brancos começarem a se importar com os negros, talvez as coisas possam começar a mudar. Porém, sabemos o quanto é difícil um branco conseguir ter a humildade de olhar para seu lugar de privilégio e querer fazer algo para transformar toda essa estrutura racista em que vivemos.”, concluiu.

A ‘patroa’ de Madalena, que não teve seu nome revelado, terá de pagar R$150 mil em indenização por danos morais e verbas rescisórias, em 50 parcelas mensais, à vítima, que já foi retirada do local e encaminhada à casa de familiares. A indenização também cobre a apropriação indébita de um benefício de prestação continuada (BPC) no valor de R$20 mil, recebido pela doméstica após ser diagnosticada com um tumor cerebral, que teria ficado com a filha de seus patrões. A família também teria feito diversos empréstimos em nome da vítima.

De acordo com a doutora Michelle Vargas, advogada em direito trabalhista e especialista em direito antidiscriminatório, Madalena teve seus direitos constitucionais, como o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade e igualdade, bem como seus direitos trabalhistas, à recebimento de salário e a jornada de trabalho diária de 8 horas, com intervalo para refeição e descanso, férias, pagamento de décimo terceiro salário, recolhimento de FGTS e INSS, entre outros, violados. O crime prevê a possibilidade de prisão com pena de reclusão de 5 a 10 anos e multa, conforme o artigo 149 do Código Penal, além do pagamento da indenização por danos morais à vítima.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, quase 21 milhões de pessoas vivem em condições análogas à escravidão no mundo. No Brasil mais de 55 mil pessoas foram resgatadas entre 1995 e 2020. Michelle explica que essas são pessoas que não têm consciência de seus direitos, nem acesso a qualquer tipo de informação e portanto não tem a quem recorrer para pedir ajuda. Ainda de acordo com ela, essas situações continuam ocorrendo por “falta de fiscalização efetiva no cumprimento da Lei e de conscientização da nossa sociedade estruturalmente racista”.

“Essas situações acontecem, não porque nossa legislação é falha, mas pela prática do racismo estrutural arraigado em nossa sociedade, que ainda é latente. A falta de fiscalização efetiva no cumprimento da Lei e de conscientização da nossa sociedade estruturalmente racista e baseada na cultura de que algumas pessoas devem ser subservientes a outras, resquício da época da escravidão, deixa lacunas que permitem que situações como essas continuem acontecendo. Mas ainda temos esperanças, através das operações conjuntas entre o Ministério Público do Trabalho, Secretaria de Inspeção do Trabalho e Polícia Federal, que vem intensificando as ações de proteção aos trabalhadores e combate ao trabalho escravo e fazendo as intervenções necessárias para que os seus empregadores/opressores sejam devidamente identificados e punidos.”, sustentou a advogada.

O caso de Madalena chegou às autoridades após denúncia anônima encaminhada ao Ministério Público do Trabalho (MPT). O resgate fez parte de operação de fiscalização da Comissão Estadual de Combate ao Trabalho Escravo da Bahia (Coetrae-BA) que contou com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT), de auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Previdência Social, da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), da Defensoria Pública da União (DPU) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

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