Tortura na Ilha das Flores
Relatório da Comissão da Verdade aponta quartel como ‘pesadelo’ para estudantes

Ponta dos Oitis foi apontada por ex-presos políticos como a casa de tortura em Ilha das Flores
Foto: DivulgaçãoPor Elena Wesley
Na próxima quinta-feira (10), a Comissão Estadual da Verdade (CEV-Rio) entrega o relatório final após dois anos e meio de pesquisa. O documento engloba lista de mortos e desaparecidos, agentes do Estado envolvidos nos crimes contra direitos humanos, casos investigados e a identificação de 21 locais de prisão e tortura. Entre eles, a Ilha das Flores, em Neves, São Gonçalo. A cerimônia de entrega será realizada no Palácio Guanabara, às 17h.
De acordo com o capítulo 19 do relatório, o quartel da Marinha recebeu 200 presos políticos entre 1969 e 1971, sendo que a maioria era formada por estudantes. “O Estado levou para a Ilha das Flores as vítimas da primeira onda de perseguição. Os presos integravam a formação inicial do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), que praticamente se desfez com as prisões. Os membros eram jovens entre 18 e 21 anos, majoritariamente, estudantes”, explica Álvaro Caldas, integrante da comissão.
O jornalista acrescenta que cada entidade das Forças Armadas era responsável por investigar determinados grupos de militantes. O MR8 e o Ação Popular foram os alvos das investidas do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), cuja sede na Praça XV, no Centro do Rio, também serviu de polo de tortura.
Caldas afirma que as diligências e a coleta de depoimentos, realizados em parceria com a Comissão da Verdade de Niterói, apontaram a Ilha como precursora do DOI-Codi, implantado apenas a partir de 1970, na Tijuca, Zona Norte do Rio.
“A Ilha das Flores ficou um pouco esquecida em comparação a outros locais por não apresentar registros de morte. Porém, teve grande importância, já que servia como local de estadia e de tortura”, ressalta Caldas, preso por envolvimento no Partido Comunista Brasileiro (PCBr), atrelado à luta armada. Repórter no Jornal do Brasil, Álvaro passou quatro meses sob regime de tortura no DOI-Codi, entre fevereiro e junho de 1970.
Soldado ajudava presos
Dez ex-presos políticos e um ex-soldado do corpo de fuzileiros navais da Marinha reconheceram os locais de prisão e tortura em Ilha das Flores durante diligência realizada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a CEV-Rio em outubro de 2014. O ex-fuzileiro, Heleno Cruz, já havia prestado depoimento à comissão gonçalense, conforme noticiado em OSG.
“Vinham pessoas de fora para interrogar e torturar. As sessões eram conduzidas por oficiais de inteligência da Marinha, que contavam com a colaboração de servidores cedidos pela Polícia Federal e pelo DOPS do Rio. Os soldados daqui não tinham muita proximidade com os presos. Sempre fomos muito vigiados, mas havia um pequeno grupo que tentava ajudá-los. Levei bilhetes, embrulhados em balas, de uma cela para outra”, contou Heleno, conforme consta no relatório.
Heleno guiou a comitiva até a Ponta dos Oitis, uma casa abandonada, ainda nos limites da Ilha, onde ocorriam as sessões de tortura. Ex-presos como Zélia Reznik, primeira mulher presa em Ilha das Flores, reconheceram o local e recordaram as práticas de tortura.
“Os agentes formaram um círculo e me imprensaram, nua, contra a parede. E gritavam: ‘Você, tão branquinha, casada com um negro’”, lembrou.
Ilha das Flores esteve sob o comando do capitão de mar e guerra Clemente Monteiro Filho, apontado como torturador no relatório da CNV. Ex-presos também citaram o médico José Lino Coutinho, que avaliava as condições físicas das vítimas durante as sessões de tortura.