Pobreza Menstrual: entenda as questões por trás do veto à distribuição gratuita de absorventes
Conheça também o trabalho de alguns coletivos que atuam em prol da Saúde Menstrual no Brasil

O presidente da república, Jair Bolsonaro, vetou a distribuição gratuita de absorventes para estudantes de baixa renda e pessoas em situação de rua, na última quinta-feira (7). A decisão levou à ‘boca do povo’ um assunto ainda pouco discutido no Brasil mas de extrema importância para sua população, a ‘Pobreza Menstrual’. Para entender um pouco mais sobre o tema e a comoção pública gerada pelo veto, a equipe do OSG conversou com algumas lideranças locais de projetos que trabalham em prol desta pauta.
A ‘pobreza menstrual’ é definida pela falta de acesso aos recursos necessários para o cuidado com a saúde menstrual, como itens básicos de higiene menstrual, infraestrutura sanitária e educação sobre o tema. Esta questão afeta diretamente 28% das mulheres de baixa renda no Brasil, segundo levantamento realizado pela marca de absorventes Sempre Livre, em 2018. Além disso, como explica a educadora e coordenadora de programas do Girl Up Brasil, Graziella Carvalho, de 25 anos, a higiene menstrual é reconhecida como um direito humano é uma questão de saúde pública pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2014.
“A importância da aprovação do projeto começa quando a gente entende que a pobreza menstrual é um assunto público reconhecido pela própria ONU como um tema que deve ser pautado por políticas públicas. Na agenda 2030, ODS 5, de igualdade de gênero, tem um texto que deixa bem claro que o direito humano à água, saneamento básico e higiene pessoal e menstrual, precisam ser assegurados a quem não tem condições de pagar por eles. Então afirmar que esse projeto vai contra o interesse público é mais do que uma falácia, é deixar claro que esse é um governo que segue uma agenda que vai contra a dignidade humana e os direitos humanos.”, sustentou a educadora.
O Girl Up é um movimento global que ‘treina, inspira e conecta’ jovens a se tornarem líderes e ativistas, desenvolvendo ações e campanhas em prol da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. A organização conta com mais de 4,5 mil sedes em 125 países diferentes e já impactou a vida de mais de 85 mil meninas. Atualmente, são 150 clubes só no Brasil.
À âmbito estadual, as ações do grupo foram, fundamentais para a criação do projeto de lei que inclui absorventes e fraldas descartáveis nas cestas básicas do governo, aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) em 2020. Além disso, o relatório “Livre para menstruar: pobreza menstrual e educação de meninas” desempenhou papel fundamental ao trazer dados até então inéditos sobre a pobreza menstrual no país e atentar às autoridades para a relevância do tema.
“No nosso relatório levantamos dados que mostram que no Brasil, ao longo de sua vida, uma mulher gasta de R$3 a 4 mil só para comprar absorventes. Isso quer dizer que a população mais pobre trabalha em média quatro anos da sua vida só para custear absorventes. Então muitas meninas não podem arcar com isso. Nosso estudo mostra ainda que uma a cada quatro meninas deixou de ir para escola por estar em situação de pobreza menstrual e não se sentir segura. Esse é um efeito escala que afeta não só essas mulheres mas toda a comunidade em seu entorno, uma vez que essa mulher deixa de desenvolver seu potencial produtivo, deixa de estudar e perde oportunidades justamente porque não tem segurança durante seu período menstrual. Então é um assunto de extrema urgência.”, ressaltou Graziella.
27 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza e tentam sobreviver com uma renda mensal de até R$246, segundo levantamento divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em março deste ano. Além disso, 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiros ou chuveiros em suas casas, segundo a Unicef. Essas pessoas não possuem os recursos necessários para promover os cuidados básicos com a sua saúde menstrual. Por isso, é de extrema importância que tais recursos sejam oferecidos pelas instituições públicas de ensino. Ainda assim, 4 milhões de meninas não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais em suas escolas, de acordo com a Unicef, e boa parte das escolas do país sequer têm acesso a abastecimento público de água (26%) ou à rede pública de esgoto (49%), de acordo com o Censo Escolar 2018.
“Não estamos falando aqui sobre distribuir absorvente para todo mundo sem responsabilidade fiscal, muito pelo contrário. Mas assim como todos os estudantes precisam de papel higiênico e água potável nas escolas, os estudantes que menstruam também precisam de absorventes para poder estudar. As redes de ensino só têm a ganhar reconhecendo que os absorventes são tão necessários quanto qualquer outro equipamento de estrutura nas escolas.”, sustentou a coordenadora de programas do Girl Up Brasil.
Mas o Girl Up não estão sozinhas nessa luta. Existem diversas iniciativas que lutam pela dignidade menstrual das mulheres, como por exemplo o “Tô de Chico”. O projeto social criado por Carolina Chiarello, de 27 anos, e a Talita Soares, de 24, em dezembro de 2018 ,distribui absorventes, roupas íntimas, sabonetes e preservativos para pessoas que menstruam em situação de rua. Suas fundadoras estimam que a iniciativa já tenha alcançado pelo menos 2 mil pessoas e distribua algo entre 100 e 200 kits, compostos por 10 absorventes normais e 5 noturnos, por mês. Talita conta que tudo começou com a constatação de um direito que, dadas as condições, mais parece um privilégio.
“O Tô de Chico começou em dezembro de 2018, a gente tava conversando sobre como é difícil menstruar e no meio da conversa nos demos conta de que existem pessoas que não não podem fazer a higiene menstrual por falta de suporte, ou de acesso mesmo. No mesmo dia decidimos criar um Instagram e começar uma arrecadação. Não sabíamos se seria algo pontual ou recorrente, mas ‘graças a Deus’ já na primeira arrecadação recebemos muitas doações, fomos pra rua e tivemos um retorno muito positivo.”, afirmou a idealizadora.
As meninas do Tô de Chico realizam tanto a distribuição de absorventes nas ruas quanto doações mensais a partir de parcerias fixas com ONG’s que atuam em ocupações, como a do Espinha em Realengo, ou com o Consultório na Rua, uma parte do SUS que atende somente pessoas em situação de rua. Contudo, faz-se importante ressaltar que eu trabalho é 100% voluntário e, portanto, depende da doação de terceiros para continuar funcionando. Talita, explica como ajudar.
“É bem simples. No nosso instagram, @eutodechico, tem nosso wpp que é o contato mais fácil, mas também pode falar conosco pela DM do Instagram. A gente só recebe doação em material porque ainda somos um projeto social, não somos uma ONG, então a gente não aceita doação em dinheiro. Mas a gente entende a praticidade de se doar em dinheiro e uma saída que a gente encontrou foi receber as doações em endereços específicos. Então, a pessoa pode fazer a compra online, e pedir pra entregar nos endereços disponíveis, em Niterói ou na Ilha do Governador.”, esclareceu ela.
O projeto esteve envolvido ainda na aprovação de um projeto de lei (PL), desenvolvido em parceria com a vereadora Benny Briolly, que prevê a distribuição de absorventes em escolas públicas e postos de saúde de Niterói. Por isso, a decisão do chefe do executivo teve um peso ainda maior para elas, que expressaram seu descontentamento com a decisão.
“A gente tem visto essa movimentação em várias localidades do Brasil de projetos de lei na esfera municipal e estadual que distribuem absorventes em escolas públicas, postos de saúde, para pessoas em situação de rua, então faria muito sentido que agora fosse uma lei federal. Então, quando veio o veto ficamos sem acreditar, porque parece que a gente tá retrocedendo. Isso é bem ruim, porque o objetivo do Tô de Chico é um dia parar. Não que a gente não goste do nosso trabalho, mas não queremos mais ser necessários, queremos que a pobreza menstrual seja erradicada, que o governo preste essa assistência. Porque o que a gente faz é prestar uma assistência que deveria ser prestada pelo governo, mas não temos projetos de lei para isso porque não se olha para as demandas femininas e da população em situação de rua, que é 100% invisibilizada em nossa sociedade.”, desabafou Talita.
A negligência com as demandas das mulheres está diretamente relacionada à baixa representatividade feminina no Parlamento do Brasil. Apesar de serem 52,5% do eleitorado, as mulheres ocupam apenas 77 das 513 cadeiras (15%) da Câmara dos Deputados e 12 das 81 vagas (14%) do Senado. Isso significa que a validade de suas demandas e necessidades não está sendo avaliada por suas iguais, mas por homens que nunca sentiram na pele o que é ser mulher no Brasil. A Graziella do Girl Up, aproveitou o espaço para questionar as prioridades do governo federal e a má vontade com que encara as demandas dessa grande parcela da população.
“O governo só tem interesse em gastar recursos públicos com as agendas que lhe convém. O projeto de lei foi desmantelado justamente para não atender as pessoas em situação de vulnerabilidade social que são as que mais precisam do SUS. Enquanto isso, hoje eu li no Estado de Minas que o governo liberou R$26,5 bilhões para a bonificação de militares em adicional de habilitação. Com esse recurso, se você pegar o preço de um absorvente na farmácia, você vai comprar aí 60 milhões de absorventes e vai atender a população em situação de vulnerabilidade social que menstrua no Brasil por pelo menos dois anos. Então, não é questão de ferir princípio algum ou de não termos dinheiro para isso, é uma questão de prioridades.”, refletiu a educadora.
* Estagiário sob supervisão e edição de Sérgio Soares