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1964, o ano em que a bola não rolou no Caio Martins

relogio min de leitura | Escrito por Redação | 30 de julho de 2015 - 10:11

Cena cotidiana no período após o golpe

Foto: Acervo Governo do Estado do Rio

Por Ari Lopes, Sérgio Soares e Gustavo Aguiar

Principal ‘templo’ do futebol no Leste Fluminense durante décadas, o estádio Caio Martins, em Icaraí, também teve seu período ‘negro’ durante os ‘anos de chumbo’ da ditadura militar. Por meses, no período que sucedeu ao golpe militar de 1º de abril de 1964, o complexo esportivo serviu de cadeia para presos políticos. No campo, em vez da emoção dos gols e das memoráveis partidas de futebol, centenas de jovens estudantes, sindicalistas e veteranos militantes se aglomeravam nos dias de ‘banho de sol’.

O SÃO GONÇALO localizou dois personagens que sofreram os horrores daquele período: o aposentado José Soares Gonçalves, de 87 anos, e Benedito Joaquim dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Operários Navais, de 86 anos.

“Fiquei preso durante sete meses. O ginásio do Caio Martins foi uma das ‘prisões’ por que passei ao longo de um ano após o golpe, simplesmente porque suspeitavam que eu era comunista. Jamais imaginaria que ali, um ponto de confraternização de torcedores e da prática do esporte mais popular do país, eu iria ficar naquela situação”, relembra José Gonçalves, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Nascido e criado em São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos Fluminense, José buscou em São Gonçalo um ponto de referência para viver. Constituiu família, teve um filho e conseguiu se encaminhar como carpinteiro no Loyd Brasileiro, na época, um dos ‘gigantes’ da indústria naval nacional, que, por conta da má administração, foi à falência no início da década de 1970.

Ligado ao Sindicato da Construção Naval de Niterói, Gonçalves, na época do golpe, era um dos diretores de seu setor. No dia 1º de abril de 1964, data em que os militares tomaram o poder, a direção do Loyd deu folga coletiva a todos os funcionários. Sete dias depois, todos os cerca de 2 mil operários foram convocados a voltar às atividades na sede da empresa, na Ilha de Mocanguê. “Quando chegamos, o local estava cheio de fuzileiros navais. Pressenti que algo de ruim aconteceria naquela dia”, rememora.

José Gonçalves, ao lado do vereador Leonardo Giordano, foi um dos que passou pelo local
José Gonçalves, ao lado do vereador Leonardo Giordano, foi um dos que passaram pelo local

Fuzilamento - Segundo o ex-preso político, os militares passaram o dia fazendo triagens e já tinham informações sobre quem seriam os supostos comunistas - apenas quatro entre todos os operários, incluindo José Gonçalves.

“Sofremos uma tortura psicológica. Eu e meus três companheiros fomos colocados de joelhos e com as mãos na cabeça em uma área da Ilha. Em seguida, um grupo de militares, com fuzis, se perfilou e simulou um fuzilamento para tentar arrancar algo de nós. Mas não éramos subversivos, apenas trabalhadores”, declarou Gonçalves, demonstrando arrepios e um leve choro ao relembrar as cenas.

Os militares o mantiveram preso por sete meses, até dezembro de 1964, passando por vários pontos, como o ginásio do Caio Martins, unidades militares e presídios.

Por causa da rotina de torturas, que incluíam agressões e choques elétricos, a vida de Gonçalves nunca mais foi a mesma.
Nem o requerimento de anistia, requerido em 2009 e o diploma do Ministério da Justiça, com pedido de perdão pelos atos dos militares, que é guardado com orgulho pelo idoso, serviram para amenizar a dor de tudo o que passou.

Mais de 1.000 ficaram presos no Complexo

Instaurada em abril de 2013, por iniciativa do vereador Leonardo Giordano (PT) a Comissão da Verdade de Niterói (CVN) contribuiu com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue em dezembro à presidenta Dilma Rousseff.

O documento aponta que o Caio Martins serviu de ‘campo de concentração’ para diversos presos políticos, a partir de abril de 1964. Embora o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro registre a ‘prisão’ de apenas 300 pessoas, os depoimentos coletados pela CVN apontam que esse número foi superior a mil.

Num dos relatórios, datado de 6 de maio de 1964, Urbano José Cariello, delegado adjunto do DOPS, determina ao escrivão Nilton Vieira que o acompanhasse ao estádio para realizar diversos interrogatórios de pessoas detidas sem a devida formalização ou instauração de inquérito policial.

As declarações prestadas nos dias posteriores por outras pessoas presas no estádio foram colhidas pelo escrivão José Augusto de Almeida, por determinação do delegado Celso Valente, no próprio Caio Martins.

Para Leonardo Giordano, o trabalho de consciência e resgate histórico é fundamental no processo de consolidação, avanço e amadurecimento da democracia brasileira. “Levantamos novos documentos aqui em Niterói. O Caio Martins foi o que mais se destacou, infelizmente pela quantidade de pessoas que por ali passaram. Valeu a pena elaborar, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal Fluminense, este importante projeto, que resgata, na prática, nossa memória como nação e cidade”, destaca Leonardo Giordano.

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Serie de futebopl 30 500 ditadura
Lista oficial de presos mostra variedade de profissionais

Primeiro estádio usado como presídio na América do Sul

Ao vencerem a Argentina, no último dia 4 de julho, e se sagrarem campeões da Copa América, os chilenos trouxeram ao Estádio Nacional, em Santiago, capital do Chile, e sede da final do torneio, uma alegria que nem sempre foi comum. Nenhum dos jogadores campeões era nascido, quando, em 11 de setembro de 1973, sob comando de Augusto Pinochet, tropas militares depuseram o presidente eleito Salvador Allende, iniciando um longo e tenebroso período ditatorial, encerrado somente em 1990.

O Estádio Nacional do Chile, assim como o Caio Martins, foi utilizado como prisão política nos primeiros anos da ditadura chilena, mas, assumindo maiores proporções que o niteroiense, o Complexo de Santiago recebeu mais de 40 mil presos, de diferentes nacionalidades, servindo como centro de tortura psicológica, física e até mesmo assassinatos. A maior brutalidade do Nacional não ameniza, no entanto, o que aconteceu em Niterói, tampouco retira do Caio Martins a triste marca de ser o primeiro estádio/prisão da América do Sul.

Benedito Joaquim dos Santos é um dos que passaram, sob intensa vigia de ‘milicos’ e brutal tortura psicológica, por lá. À época do golpe militar, o então presidente do Sindicato dos Operários Navais do Rio de Janeiro e militante do Partido Comunista Brasileiro foi preso em Itaboraí, onde se escondia, e levado para diferentes dependências militares, em Niterói e no então Estado da Guanabara. Passou por torturas físicas, como afogamentos, e foi encaminhado ao Caio Martins, local em que conviveu desumanamente com outras centenas de presos.

Benedito dos Santos segura foto em que aparece ao lado de Badger Silveira e João Goulart, então governador do Rio e presidente da República, respectivamente.
Benedito dos Santos segura foto em que aparece ao lado de Badger Silveira e João Goulart, então governador do Rio e presidente da República, respectivamente.

“Olhando para trás, não daria um passo diferente do que dei”, afirmou Benedito, antes de deixar um recado para os que por ventura não tenham ideia do que aconteceu entre 1964 e 1985 no Brasil.

“Entre uma péssima democracia e um vistosa e eficiente ditadura, fico com a democracia. Que aquilo nunca mais se repita!”.

Em protesto realizado em 2012, no próprio Caio Martins, uma faixa foi estendida no portão, lembrando a utilização do estádio pelos torturadores militares.

serie de futebol 30 500 faixa caio martins foto DIV Acervo GOV Estado

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